Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Ir a Lisboa

 

De ontem e de hoje – Ir a Lisboa
por Licínia Quitério

Iam a Lisboa visitar as velhas amigas que há muitos anos, tantos quanto somavam três gerações bem contadas, emigraram para a cidade, levadas pelos pais, em busca, como todos os deslocados deste mundo, de melhor fortuna. Moravam numa grande cave que servia de habitação de porteiro, com muitos compartimentos e um longuíssimo corredor. Só menos de metade da casa recebia luz do exterior, através de pequenas janelas basculantes, abertas e fechadas com o auxílio de uma comprida vara de bambu, com um gancho engenhosamente colocado numa das extremidades. De alguns sítios estratégicos da casa podia avistar-se, lá muito em cima, os trolleys dos eléctricos, aqueles carrinhos maravilha que deslizavam, velozes mas tranquilos, pela cidade fora, subindo e descendo colinas, a sublinhar as sinuosidades das encostas.

Deixavam-se as lembranças dos amigos comuns. Perguntava-se se queriam alguma coisa para a terra. Aquela grande casa pobre, com cheiros de alfazema e de sabão de amêndoa, era um porto de abrigo. Ali se hospedavam, a troco de nada, todos os que precisavam de permanecer por mais de um dia na cidade. Eram as consultas médicas, as visitas aos familiares hospitalizados, que não havia o socorro necessário na pequena vila. Eram os exames, nas escolas, nos liceus, que só na cidade podiam ser feitos. Era até um emprego novo, coisita sem importância, e ainda por cima à experiência. Ficava-se ali o tempo que fosse preciso, a ver onde paravam as modas. Havia sempre um colchão, um divã, umas mantas de trapinho tricotado, tudo muito asseado.

As velhas amigas serviam há muito em casas de ricos que lhes permitiam o acesso aos restos: comida, fatos fora de moda que foram dos meninos, brinquedos amputados de peças. E desses restos havia sempre sobras para os outros pobres que por ali acostavam. Uns calções do menino Nuno, ainda em tão bom estado, assentam a matar no Zé Manel que só tem dois pares e tão coçados que, no cheio das pernas, mais parecem de renda. Uma gabardina, esta do Senhor Engenheiro, um homenzarrão, talvez sirva ao Ludovino que é tão grande como ele, mas tem a alma muito maior. Entregam um embrulhinho, pedem o favor de o fazer chegar à Lurdes Cigarra, coitada, com tantos filhos e o homem sempre doente.

Até à próxima. Os abraços são de aconchego, os beijos repenicados. Há uma festa na cabeça do miúdo. Como ele cresceu. E bonito, benza-o Deus.

Licínia Quitério

 

 

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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