De ontem e de hoje – A Dona Rosária
por Licínia Quitério
Na loja da dona Rosária havia tudo, cabia tudo, nada se limpava, nada se fiava, nada tinha peso certo, nada tinha preço certo. Na montra da loja da dona Rosária havia um amontoado de objectos, grandes, pequenos, médios, de caixas, mais ou menos amolgadas, de moscas mortas de tédio, lá pelo meio. A loja onde reinava, absoluta, a dona Rosária, era um armazém de sacos, de tulhas. No balcão que sobrava dos objectos, dos sacos, das caixas, dos papéis, cabiam a balança e a os braços da dona Rosária que se adiantavam até às mãos dos fregueses a quem pedia que mostrassem o dinheirinho que traziam, antes de aviar a encomendinha. Falava por diminutivos, com ternurinhas de beata, o dinheirinho, a moedinha, meu menino, minha menina, pede mais dinheiro ao paizinho, diz à mãezinha que a Rosária não tem, valha-te nossa senhora, quem não tem dinheirinho não tem vícios. Era assim. Toda a gente ia à loja da dona Rosária, porque lá havia de tudo, de tudo o que mais ninguém tinha. A ratoeira para os malandros dos ratos, o petróleo para o candeeiro, o vidro para o candeeiro que estalara, o próprio candeeiro, a torcida para embeber no petróleo do candeeiro, o bocal para o candeeiro que o outro estava todo retorcido, os fósforos para dar à luz. Na dona Rosária havia tudo. Muitas vezes, a dona Rosária demorava-se a fazer o avio, porque não era fácil sacar um vidro de candeeiro que morava na prateleira mais alta, à esquerda de quem entra, mesmo por detrás dos atados de chinelos, e das fitas peganhentas para apanhar moscas. Valha-te deus, menino, que trabalhos estás a dar à Rosária. A dona Rosária roubava no peso, no preço, na qualidade. Toda a gente sabia e aceitava. Ela tinha tudo o que fazia falta, menos bondade, mas uma pessoa com tanto dinheiro e um marido cobardolas em quem mandar não podia dar-se ao luxo de virtudes para além das que a santa madre igreja ordenava e que sempre das faltas a absolvia, mais padre-nosso, mais dízima à paróquia, mais mordomia pelas festas grandes.
Era assim no tempo antigo do fado antigo da dona Rosária de carrapito e óculos de aros negros, redondos, como agora se usam, de mãos estendidas para os dinheirinhos dos meninos com paizinhos desgovernados, desmiolados, que não sabem quanto custa a vida de quem trabalha como ela, a dona Rosária da loja que aqui recordo.
Licínia Quitério
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