Crónica de Licínia Quitério | Conversa de mulheres

Crónica de Licínia Quitério

 

De ontem e de hoje – Conversa de mulheres
por Licínia Quitério

 

A Matilde chegou em passo mais estugado do que era seu hábito. Vem sem óculos. Mal chegou explicou:

“Estás a estranhar qualquer coisa. Isso mesmo. Larguei os óculos. Decidi-me por lentes de contacto. É hoje o meu primeiro dia de olhos novos. Estou a gostar. Diz lá se não pareço mais nova. Não te rias, qual é a mulher que gosta de envelhecer, qual? Enquanto puder vou disfarçando os anos. Disfarçando apenas, que eles vão somando, somando, fazendo estragos.

A gente percebe isso quando os homens já não se voltam para nos olhar como faziam antigamente ou quando uma manhã olhamos para o espelho e pensamos, ao que eu cheguei, estou um belo traste, estou. É a lei da vida, pois.”

Reparei que trazia um vestido de tecido leve, estampado com flores miúdas, coloridas, a dar-lhe um ar juvenil. A Matilde sabe bem cuidar-se como faz qualquer mulher que quer prolongar no tempo a sua capacidade de sedução, mesmo que não pense usar quem porventura for seduzido. Não deixa de ser uma pequena perversidade para provocar o despeito de outras mulheres e, sempre que a ocasião se mostre, atrair candidatos a conquistadores para depois os afastar e regozijar-se ao vê-los desconsolados por terem caído na armadilha. A guerra dos sexos com as suas variantes através dos tempos.

Estou a ser precipitada na apreciação a propósito do vestido dela. Caio muitas vezes na tentação de catalogar as pessoas, sobretudo mulheres, baseada num pormenor que me chamou a atenção e que pode ser a brusquidão ou a suavidade de um gesto, a entoação repetida de uma expressão, o adereço desconforme ou sabiamente casado com o todo. Poderá ser que a manifestação da vontade de perceber o outro, quiçá impertinente,  seja o motivo que já tem provocado a observação:

“Tens a mania que és bruxa”.

Talvez sim, talvez cometa o abuso de tentar penetrar lugares que alguém pretende secretos, resguardados, mas não, não julgo possuir poderes.

Como se tivesse podido dar conta destas minhas reflexões, disse a Matilde:

“Mudei o cenário. Apeteceu-me. Já adivinhaste o porquê, o como, o quando. Escuso de dar mais explicações. Nada escapa a esse olharzinho de lince.”

O melhor era rir. Foi o que fiz. Foi o que ela também fez.

Licínia Quitério


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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