Crónica de Licínia Quitério | As visitas

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | As visitas

por Licínia Quitério

 

É o Verão que as traz e com as visitas chegam algumas horas de conversa e boa disposição, a refazer histórias antigas e um tanto esquecidas, também a inaugurar novas tagarelices, ilustradas de episódios mais ou menos jocosos, mais ou menos rigorosos quanto ao tempo da acção e à veracidade de certas personagens. Nada que importe, já que a ocasião não é para falar de assuntos demasiado sérios, para isso existem os outros dias, os outros menos amáveis encontros.

Vêm para cumprir um ritual, um hábito, uma vontade de dizer presente, cá estou, antes que o cansaço do corpo ou a sensaboria do último encontro se façam sentir e, apesar disso, persista a esperança de que outras visitas anuais possam vir a acontecer.

Vêm porque lhes fica em caminho ou porque de propósito se deslocam, vencendo preguiças, desencantos, imobilismos forçados ou consentidos. Descem a rua, asseguram-se do número da porta, é ali mesmo, as flores nas janelas dizem da mulher da casa, amiga de há tantos anos. Tocam à campainha e a tal, a das flores nas janelas, afasta uma cortina, abre um sorriso largo, e logo vem abrir a porta. É o abraço anual, como estás, como tens passado. Estamos mais velhas, pois claro, a vida é mesmo assim. A mulher da casa afirma, eu não envelheço, não tenho tempo para isso. Sempre a mesma brincalhona, dizem as visitas em coro.

Vão escorrendo as horas que parecem poucas, há tanto para dizer, passou um ano, quem diria, novidades sempre as há, boas e más, da família, dos amigos comuns, do mundo que anda desvairado, quem havia de dizer que chegávamos a isto. De repente há um olhar que se faz nublado, o que foi, desculpa, não queria falar disso, dela, da que faltou ao encontro. Foi uma pedra de silêncio que caiu no chão da sala,  não me digas, como aconteceu, não somos nada, não, não sabia. A mulher da casa pega na pedra, atira-a para longe, fica por instantes um pouco rouca, mas cabe-lhe salvar o encontro e por isso continua como se nada tivesse acontecido. Recupera a clareza da voz, venham até ao pátio, sou muito vaidosa das minhas flores. Raminhos de lúcia-lima perfumam as mãos, a casa.

As visitas de Verão prometem voltar antes que mais um ano passe, ficou muito por dizer, o tempo anda a correr. Deixam uns bolinhos, um livro, não sei se gostas. Recebem outros livros para a troca, bolos não tenho, desculpem, os miúdos vieram ontem e limparam tudo, sabem como é.

Vêm no fim do Verão, as visitas, antes que partam as andorinhas. Como elas, já fizeram ninhos que vão ficar vazios até que chegue outra Primavera e outra e mais outra, quem sabe quantas, melhor não saber. Até à próxima, foi tão bom ver-te. A casa e a mulher da casa ficam a cheirar a bolos, a flores, a abraços.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | As visitas”

  1. Maria Clara

    Talvez seja por isso que o verão cheira a baunilha. A abraços também, o perfume dos afectos de que só Poetas como a Licínia se conseguem aperceber.
    Mais um texto que irei guardar.
    Clara

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