Crónica de Licínia Quitério | As novas solidões

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | As novas solidões

por Licínia Quitério

 

É-me difícil alinhavar palavras sobre o dia a dia quando o mais indesejável acontece, de hora a hora, neste mundo em sobressalto e nos invadem notícias relevantes, ou nem por isso, em rio caudaloso, mais de pedras e lodo que de águas limpas.

São as guerras que chegam do lado de lá dos monitores, guerras que começaram há muito, que delas não nos apercebemos e que agora explodem em directo, dizem, ou em repetição incessante. Andamos aturdidos, quem ganha ou quem perde é o que menos interessa, o porquê muito menos, o que queremos é deixar de ver matanças diárias, lágrimas diárias, feridas para toda a vida em populações que vão esquecendo o que é viver em paz.

O desfile dos personagens que se arrogam senhores do dinheiro e da sorte dos povos causa-nos perplexidade e desgosto, como se os vampiros deixassem de ser personagens de ficção e vivam, em carne e osso, dispostos a alimentarem-se da nossa aflição. Foi deles que tão bem disse José Afonso: “eles comem tudo e não deixam nada”. Em cada tempo, em cada ano, têm nomes diferentes, estranhos para a nossa fonética, embora os haja de sons lusitanos, porque também entre nós, disse Camões, “traidores houve algumas vezes”.

Mas temos a internet, um bem acessível ao grande mundo, preparado para o avô, para o pai e para o menino. É só escolher a rede, que o peixe vem à babugem, como bem sabem os Zucas e os Elons.

Abençoados aqueles que nos tiram do pesadelo e nos fazem rir, como as proezas do ladrãozeco de malas, mais estúpido do que cleptomaníaco, não pertencesse ele ao clã dos superhomens dispostos a “limpar” o país, quiçá o mundo, os mesmos que agora o expulsam por nem malas ter sabido “limpar”, o pobre pateta.

Falando ainda da internet, seus benefícios e malefícios, não posso deixar de contar a estranheza que foi para mim saber as razões de um velório não ter acolhido as honras devidas ao defunto, por ausência quase total de assistentes. Estranharam, pois estranharam, os raros presentes, mas tudo lhes foi explicado. Ninguém, na pequena povoação, soube do falecimento porque não houve anúncio na internet, o que a família lamentou. E mais explicou que,  julgando ser isso um procedimento automático, nestes tempos modernos, obviamente não foram feitas comunicações verbais, muito menos presenciais.

Em todas as gerações, as pessoas cada vez estão mais sós, substituindo o contacto presencial com o outro por ilusórias relações virtuais com estranhos ou com conhecidos que deixaram de ver, ouvir, cheirar, sentir, em resumo, conhecer sensorial e emocionalmente, desprezando qualquer interligação dos reais atributos de seres humanos.

São as novas solidões a permitirem o alheamento das pessoas perante os perigos desta nova ordem, seja lá isso o que for.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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