Crónica de Licínia Quitério | AS CASAS

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | As casas

por Licínia Quitério

 

As casas envelhecem, ou antes, envelheceu quem nelas morou e partiu há muito. Ficaram vazias as casas que vão perdendo a cor, a cal, as telhas, as pedras. Preparam a morte súbita do dia em que vierem as máquinas. Estavam feias, as casas, dizem, velhas, com mau aspecto, a terra não gosta de mostrar ruínas, decadências, que dirão os turistas que passam e olham ou só passam sem olhar.

No lugar das casas que foram novas e bonitas, dos quintais que  deram flores e frutos, haverá um espaço moderno, limpo, quase asséptico, mais útil, dizem, do que foram as casas, os quintais de cuja velhice ninguém cuidou, que o progresso tem pressa e, contas feitas aos gastos, mais vale fazer novo que recompor.

Só a memória poderá salvaguardar o passado contra o avanço impiedoso das máquinas, dos homens, do presente. A memória guarda-se nos retratos antigos, nas cantigas antigas, nas histórias tristes ou alegres, banais ou picarescas, de pessoas que passaram por nós, que viveram nas tais casas que um dia vão abaixo ou de tal forma são modificadas que já não guardam nem a cor da tinta da casa de jantar nem o desenho dos mosaicos da marquise.

Quando alguém se atreve a voltar à terra, procura em redor lugares que tão bem conheceu, portas, janelas, quintais, que foram de família, de amigos, de vizinhos, de gente que já lá não está ou está tão diferente que não dá para reconhecer.  Dizemos para o companheiro, aqui morava a F, falei-te dela, tinha um cãozito que ladrava a quem passava, chamava-se Piloto, se bem me lembro. Ali era a loja do sr. A, tantas vezes lá fui comprar fruta, figos doces, pelo São João, tão doces não voltei a comer. A loja chamava-se “A Tentadora”, pois era, agora vende artigos de artesanato, ao menos não mudaram a porta, bem bonita, com batentes em garra de leão, nem a barra de azulejos azuis e amarelos.

Gostamos de perceber que aquele prédio na zona velha foi bem tratado e mantém as janelas de guilhotina, ou de enforcado como também se chamava. Não gostamos de encontrar automóveis estacionados, bem alinhados, é certo, onde dantes havia um espaço ajardinado com canteiros bem desenhados. A sonsa da memória traz-nos o cheiro adocicado das flores dos goivos, nas noites quentes da terra, melhor dizendo, nas horas quentes da nossa mocidade.

Um dia voltaremos e já nem a rua terá o mesmo nome e até nos parecerá mais longa do que quando a subíamos e descíamos a correr.

Nesse tempo tínhamos muita vontade de deixar aquela terra tão sem graça para um dia dela dizermos com um brilhozinho nos olhos, olha, aqui era a nossa escola, que pena terem-na deitado abaixo.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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