Crónica de Licínia Quitério | A pergunta

 

De ontem e de hoje – A pergunta
por Licínia Quitério

 

A cozinha tinha uma porta que dava para o quintal, e na porta havia um postigo, um qua­dro de quatro vidros.

Naquele tempo, havia muitas moscas que poisavam e caminhavam nos vidros, vagarosas. De tarde, eu observava as moscas que não faltavam ao seu passeio ao Sol, nos vi­dros virados ao Sul. Chegava-me mais à porta até elas debandarem. Deixavam marcas redondinhas, pequeninas, nos vidros, que lim­pava com os dedos, quando a mãe não estava a olhar. Lembro-me de encostar a cabeça ao vidro quente e ficar assim, apoiada, olhando o quintal e não o vendo.

Nesse tempo, não sei precisar quando, nesse exacto lugar e circunstância, en­trei, sem me aperceber, no mundo misterioso e inquietante dos que colocam questões que nunca chegarão a ser respondidas.

Encostada ao vidro, muito quieta, formulava, interiormente, as perguntas fatais – Porque é que Eu sou Eu? Porque é que Eu não sou outra pessoa? Porque é que Eu tenho este corpo e não aquele? – E desfiava, num mantra silencioso, uma afirmativa-dubitativa – Eu sou Eu, Eu sou Eu, Eu sou Eu… Caía numa espécie de torpor, perdida de mim, até que, ao chamamento da mãe, um estremecimento me percorria o corpo, a anunciar o regresso de uma viagem por outra dimensão, talvez por um outro Eu, num outro corpo.

As miúdas da minha idade gostavam de tagarelar sobre a pergunta, quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Eu ria-me, encolhia os ombros e, depois de incitada a responder, atirava um, sei lá, a mostrar indiferença pelo assunto que me parecia pouco interessante.

Só uma vez me atrevi a dizer que o que me interessava mesmo era ter resposta à pergunta, porque é que Eu sou Eu. As outras olharam-me com surpresa que logo se transformou em troça. Não regulas bem, é o que é, e com o indicador davam pequenos toques no meio da testa.

Ainda hoje repito a pergunta, na certeza de que não obterei resposta. Conformei-me,  há já muitos anos, a habitar este corpo, a ter este nome, a cumprir esta vida com o Eu que me coube, sem saber porquê.

Licínia Quitério

 

 

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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