Crónica de Licínia Quitério | A nova geração

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | A nova geração

por Licínia Quitério

 

Sabes, estou a dar o Memorial do Convento.

E então, estás a gostar?

Muito. Ainda não li todo, mas já dei uma olhadela até ao fim. O que a Blimunda vê é lindo, fantástico.

Sabes que a Hélia pediu a Blimunda emprestada ao Saramago?

Sério? Como foi isso?

Pediu-lha para a fazer aparecer num livro seu, chamado Lilias Frazer.

Mas mesmo com o nome de Blimunda?

Sim, a encontrar-se com a Lilias.

Não sabia. Que coisa interessante.

Personagens dialogantes, eu própria e o jovem que anda no 12.º ano e ainda não fez dezoito anos. Ver o brilho nos olhos dele, o sorriso entusiástico a falar de um livro que tanta gente compra e não lê, deu-me uma enorme esperança na juventude, tantas vezes incompreendida, tantas vezes caluniada, tantas vezes arregimentada para más, perigosas causas. Quem agora se encanta com os poderes de uma mulher que um escritor criou, só pode encantar-se, vida fora, com as pessoas belas, com as coisas belas.

E agora um contraponto para falar do que muito nos apoquenta neste tempo virtual, digital, artificial. Tempo de descaminhos, mas também, digo eu, de grandes aventuras para os mais novos, que os mais velhos, esses, já dificilmente se atrevem a subir para este comboio que não desliza, paira.

Já nascem observados por monitores, bem cedo os seus deditos deslizarão em superfícies lisas, macias, e os olhitos irão mirar incansavelmente as imagens que se multiplicam, num carrossel de cores e sons e movimentos. São os meninos e meninas do novo tempo, diferente, melhor e pior, como todos os tempos da História dos Humanos.

Irão crescer agarrados a monitores, agarrados por eles, as suas vidas de principiantes correrão perigos, como sempre correram as vidas de quem principia.

Os mais velhos assustam-se, entristecem, sentem saudade dos rapazinhos que corriam pela rua, que esfolavam os joelhos, que liam um livrinho de aventuras emprestado, sentados no chão de um qualquer pátio e apareciam em casa com os calções sujos ou rasgados. Não entendem o silêncio quase feroz dos meninos e meninas do digital, horas a fio sentados a olharem e tocarem os seus aparelhos de último modelo que lhes mostram um mundo asséptico, inodoro, indolor.

Muitos desses jovens são pouco sociáveis, têm poucos amigos reais, são inábeis para executarem tarefas quotidianas, as mais simples.  Preferem os jogos virtuais, com amigos virtuais, que frequentam compulsivamente. Os mais velhos não os entendem, não penetram no mundo deles que admiram e receiam. Tentar protegê-los de males que desconhecem mas adivinham é  uma preocupação, uma aflição, uma frustração.

É o nosso tempo, de avós, pais, filhos, um tempo que se dilatou em conhecimento, se retraiu em humanidade. Difícil é viver, sempre foi, mas é este o verbo que tudo nos dá, para o bem ou para o mal, assim saibamos o momento e a razão de fazermos a escolha.

Perco-me a observar, provocar, ouvir, meninos e meninas da geração do “quick touch”.  Se disser que percebo quem são, quem serão, minto. Na minha idade mente-se muito.

    Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | A nova geração”

  1. Maria Clara Pimentel

    Percepção aguda, como sempre. Diálogo tão vivo que nos parece estar a ouvi-lo. uma Escrita magnífica, como é hábito, a parecer – eu disse parecer – fácil.
    Também eu tenho alguma dificuldade em entender o foco quase exclusivo no mundo digital por parte dos mais novinhos e também a mim tal preocupa. Sinto-me extremamente grata por o meu neto ter encontrado outros interesses além dos monitores. Até quando conseguirá resistir à maré, veremos…

    Clara

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