Crónica de Licínia Quitério | Import-Export

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Import-Export

por Licínia Quitério

 

Foi na profissão mais longa que tive, a de correspondente comercial em import-export, que aprendi quase tudo o que sei sobre como se fazem as coisas, como começam, como acabam, com que mãos, com que máquinas, com que ruído, com que cheiro, com que suor, com que amor, com que raiva, com que gente.

Porque tal me foi necessário para as tarefas que me eram cometidas, para além do lugar anódino do escritório, das traduções e retroversões, conheci uma fábrica por dentro, assisti à chegada e montagem e arranque de maquinaria que vinha lá do estrangeiro para onde corriam as cartas, os telefonemas, os telexes, os faxes, que fui usando para a conversa profissional, muitas vezes alargada para saber e dar notícias dos mundos, muitas vezes em várias línguas, mais ou menos conhecidas, numa algarviada que não raro desabava em gargalhada, pronto, já nos entendemos, vai correr bem, e mande a factura, as soon as possible, arrivederci Luigi, boa tarde Licínia.

Dizia eu que aprendi muito do fazer e da natureza das coisas concretas. Aprendi a espessura duma chapa de ferro, os cheiros das madeiras, a reacção química de polímeros, os desejáveis graus de secagem de uma prancha de pinho e de outra de mutene, a perícia de um torneiro mecânico, os perigos de quem opera com uma máquina de corte, os apitos da sirene à entrada e à saída, as vozes altas das máquinas, as falas poucas dos homens, o cheiro acre da serralharia, o cheiro doce da marcenaria,a cor da limalha e a da serradura. Aprendi vendo como se construía, se montava, se estofava, se embalava, se pintava. Ainda hoje, em breves bricolagens, me acodem os termos dos profissionais e, presos aos termos, os gestos e muitas vezes os rostos.

Muito mais do que falar e escrever noutras línguas que não a minha, foi-me dada a compreensão do escritório, da oficina, e do mundo dos negócios onde tudo se compra e se vende. Muito mais do que isto, foi-me dado saber o que são relações de trabalho, o que é a exploração e a perversidade de que os homens são capazes.

Fiz amigos e inimigos, amigos que se tornaram inimigos, inimigos que se tornaram amigos, como a todos acontece, a não ser aos falsos mansos, isso não é comigo, porque é que te ralas, eu quero é o meu. Brava, eu? Diziam que sim. Nas minhas andanças e experiências, fui crescendo, madurando, envelhecendo, como acontece a todos os que como eu somam anos e mais anos à vida, essa chama única e irrepetível que arde connosco e nos consome e se consome.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | Import-Export”

  1. Maria Clara Pimentel

    Penso que seria altura de reunir as crónicas aqui publicadas num volume. Porque estas crónicas são verdadeiros retratos de época, de pessoas, de saberes e fazeres que se perdem ou modificam com o tempo, reportagens únicas e um olhar que consegue ser, ao mesmo tempo, imparcial e apaixonado. O que é tão mas tão difícil…

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