Crónica de Licínia Quitério | A minha rua

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | A minha rua

por Licínia Quitério

 

Sempre chega um dia de falarmos da rua a que chamamos nossa, por lá termos nascido ou vivido tempos de crescimento e momentos bons ou maus, ambos difíceis de esquecer.

Devo ter sonhado com a minha rua porque durante o dia apareceram-me memórias de gentes de outro tempo, da rua que ainda é a mesma, mas que já troquei por outras, nas várias voltas da vida.
Eram outros, claro, os moradores da rua quando eu era pequena. Eram outros e com actividades que hoje desapareceram ou ganharam estatuto de maior importância, noutros moldes que a modernidade lhes proporcionou.

Ao cimo da rua havia o senhor Joaquim funileiro, com oficina de porta sempre aberta, entreaberta, quando o tempo embravecia, a deixar ver no interior os volumes das loiças amontoadas e o vulto esguio e escuro do senhor Joaquim funileiro, nome de profissão que já pouco se relacionava com funis, mas que perdurava a remeter para as origens. Era o senhor Joaquim quem consertava utensílios de loiça ou de metal, quebrados nas lides domésticas. Tachos de alumínio, depois de os buraquinhos inconvenientes terem sido consertados com pingos de solda, ficavam prontos para voltarem ao lume sem verterem o caldo. Nos alguidares e outras loiças, com rachas por uso ou queda inesperada, o senhor Joaquim  fazia uns furinhos onde enfiava pedaços de arame cujas pontas revirava e apertava no avesso da peça, como se fossem agrafos em costura de cirurgião. Eram os “gatos”, talvez assim chamados por fazerem lembrar as garras dos bichanos. Certo e sabido, um alguidar “gateado” durava mais umas vidas.

O Ti Joaquim morava na mesma rua, lá mais abaixo, com a Ti Perpétua, mulher corpulenta, com a força que lhe era precisa para lavar montanhas de roupa de quem para isso lhe pagava uns tostões. Não foi por esse trabalho que a Ti Perpétua fez história na vila, mas por outra tarefa, bem mais importante, que era a de ajudar a nascer. Mulheres com este jeito e vontade, chamavam-se “curiosas”, talvez para as distinguir das parteiras diplomadas que faziam nascer os filhos de gente razoavelmente abastada. Porque os menos endinheirados eram muitos mais, não faltava trabalho à Ti Perpétua, sempre pronta a acolher, nos seus braços grossos, os pequenos seres que haviam de ser as mulheres e os homens da nova geração da terra.

No tempo em que a propaganda de Salazar disse que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses, na minha rua, porta sim, porta não, fazia-se jus às maravilhas da bebida. Era ver os fregueses, à tardinha, subirem a travessa  que dava para a outra rua, entrarem na taberna do Patrício com a garrafinha vazia e de lá voltarem com ela cheia, para não falar dos copos de três emborcados ao balcão. A casa já não é do Patrício, mas o degrau de pedra ainda lá está, bem curvado no meio, a atestar o movimento da antiga clientela.

Ter sonhado com a minha rua foi o pretexto para falar dela e das suas gentes, num recordar gostoso de um tempo bem diferente do que hoje vivemos.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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