De ontem e de hoje – A aldeia global
por Licínia Quitério
A palavra “globalização” que inundou os vocabulários de todo o “globo”, pronuncia-se com cuidados redobrados, não vamos, apressados, saltar uma sílaba e desfeá-la ou torná-la intraduzível. Este arrazoado vem a propósito da observação recente de novidades de além mundo que, com a tal globalização, têm chegado aos lugares mais improváveis deste nosso país. Gente apelidada de migrante, perdida a bondade ou oportunidade de seus países de origem, chega, por caminhos impensados, a vilas e aldeias deste país de muito sol e alguma inocência, com seus costumes e linguagens diferentes, acolhidos com algum sobressalto e indisfarçada curiosidade. Também das aldeias migraram muitos jovens, desta feita para países que, esperam, lhes valorize os saberes tantas vezes ignorados ou depreciados na sua aldeia, no seu país. Ficaram os mais velhos, os sobrantes de duas, três gerações, os cofres de saberes apurados nas fainas diárias, nos diálogos com a Natureza, no esforço de obrigar a terra a produzir o que na mesa se consome. Quando à terra chegam pessoas de outros continentes, de outros climas, com crianças essas sim iguaizinhas às de cá, depois de um limitado tempo de quarentena para observação, a aproximação dá-se e por vezes alarga-se e evolui para simpatia, amizade. Dos que fingem ignorar os “estrangeiros” aos que lhes abrem a porta e com eles partilham os frutos da terra, há de tudo, nestas babilónias em miniatura. Difícil, difícil mesmo, é ultrapassar a barreira da língua, ou porque os que chegam não tiveram tempo de aprender a dos nativos, ou porque estes, nomeadamente os mais velhos, não aprenderam inglês, o tal esperanto dos tempos modernos que só os netos dominam com a maior das facilidades. A este propósito, não posso deixar de contar o equívoco que me foi relatado há dias na primeira pessoa, deturpando e ficcionando o que baste para que os personagens não sejam reconhecidos. Assim:
O senhor só fala inglês e ainda não diz nem percebe nada de português. Ora, o senhor que por sorrisos convive minimamente com uns vizinhos, soube, não se sabe bem como, do falecimento de alguém dessa família que logo identificou com a pessoa X com quem simpatizava mesmo. Com toda a delicadeza, o senhor apressou-se a entregar uma coroa de flores ao filho da falecida que ele julgava conhecer. O filho da senhora aceitou agradecido sem perceber o engano. Só depois lhe fizeram ver que o sujeito pensava que a falecida era tal senhora X muito simpática, afinal filha da falecida. E daí o alvoroço: “E agora quando ele encontrar a senhora X que pensava defunta, que irá acontecer ao coitado do senhor? Julgará ver um fantasma e cair desmaiado? Ficará sem fala durante uns tempos? Irá ao médico?”
Ora, graças à divina providência, como por ali se diz, tudo se resolveu sem grandes dramas. O encontro inevitável deu-se, a senhora X avançou decidida, o senhor parou, abriu muito os olhos, ficou em silêncio. A senhora X, que não sabe inglês mas sabe um bocado de espanhol, diz-lhe, auxiliada por mímica: “Eu não morri. MADRE”. O senhor arregalou mais os olhos, estendeu a mão para cumprimentar a senhora e correspondeu à apresentação com uma só palavra: “JOHN”. E foi assim que MADRE e JOHN ficaram a conhecer o nome um do outro, neste lugar perdido numa Ibéria de tantas e tão variadas gentes.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
Só mesmo Licínia Quitério para conseguir falar da tragédia que é ter de migrar e conseguir depois,através de um humor e um jeito tão seu de narrar, ajudar a que se complete no leitor a catarse necessária.
A prieira crónica do ano é prenúncio de um 2024 riquíssimo para os seus leitores, aquem nunca desilude.
Clara