Crónica de Jorge C Ferreira
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Quando o mais antigo começa a ser a nossa principal preocupação e faz disparar pistolas até aí esquecidas. Tudo aparece como num filme de terror. Só as coisas más, os sustos, as mágoas, as dores, as tristezas. Esquecemos todas as alegrias que vivemos. Todos os espantos de encontrar a beleza nunca sonhada. Aquela ilha onde a felicidade nos inundou. A primeira vez de tudo. As aventuras que já não conseguimos repetir. A casa que já não conseguimos construir. Os livros por ler a amontoarem-se. Passamos a ser o pessimismo, o fim de tudo, a escada que está quase a acabar. No cimo, um buraco que desconhecemos onde vai dar. Essa será a nossa nova aventura. O tal buraco negro?
De repente estamos na rua a brincar aos índios e cowboys. Os arcos de plástico e as setas com ventosa. As pistolas de fulminantes. As três covinhas, o jogo do mata, o ganso, a mão a crescer e o saquinho de pano para guardar os berlindes, feito pela Mãe com todo o carinho. O gajo que tinha o abafador. Sempre a força dos mais fortes a marcar a vida. A placa em frente da escola. Depois a placa grande. As frondosas árvores. Querer recuar mais no tempo, não é tarefa fácil. Leva-nos a uma nublosa que nada nos deixa ver. Apenas sombras, envoltas em nuvens sem cor. A quase cegueira. A cegueira de nascer e querer renascer. Há especialistas para voltar atrás no tempo. Nunca tentei.
Vejo-me a descer o passeio aos saltos a caminho da escola, a mala de cartão, os cadernos, a caixa dos lápis e o restante material a balançar como se caminhasse para uma nova vida. Era o aprender, a alegria de reencontrar os companheiros de classe. Até o professor, apesar da menina de cinco olhos. Havia quem fizesse das palmatoadas recebidas um feito para preencher o curriculum que um dia pensava fazer. «Viste como aguentei cinco em cada mão?», afirmavam, como se tivessem ultrapassado o rubicão. As mãos vermelhas, as marcas dos cinco olhos da malvada. Nada parecia incomodá-los. Nem o impacto de um ponteiro no alto da moleirinha os fazia vergar. A tudo faziam frente. Armavam-se em valentes e tentavam, assim, ter algum ascendente sobre os menos atrevidos. A sua principal intenção era serem os reis da escola e conseguirem fazer dos outros seus súbditos. Mas nem todos se deixavam subjugar. Havia uma luta intensa entre a brutalidade e a inteligência. Quase o jogo do gato e do rato. E os inesperados fins de festa.
A vida sempre foi assim. Os que querem dominar, os que se deixam dominar por dez reis de mel coado e os rebeldes, os antes quebrar que torcer. Tudo se percebe no início de tudo. Tudo nasce e, muitas vezes, morre connosco. Morrerá? Não, nisto não me vou meter. Já basta aquela história do buraco negro, algo que me fascina muito. Algo em que muito matuto. A infinitude do Universo. O imensurável. A minha loucura de querer saber para além do nunca visto.
«Então agora procuras o nunca visto? Não te chega o que vês?»
Fala da Isaurinda.
«Procurar sempre algo de novo. Algo que nos surpreenda. Sabes que sou assim.»
Respondo.
«Pois, e eu começo a compreender porque, por vezes, a tua cabeça não está por aqui!»
De novo Isaurinda, e vai, o dedo a apontar para a testa a cabeça virada para mim.»
Jorge C Ferreira Setembro/2024(448)
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Obrigado, Fernanda, que bom tê-la aqui de novo. Sempre importantes as suas palavras. Bora lá. A minha imensa gratidão. Abraço
É inevitável lembrar o passado, o nosso início. A inocência sobre tudo, até que as ditas dores do crescimento acontecem. Agora as dores da idade. Tanto acontece ao longo da vida. Faz parte dos nossos genes reviver com intensidade os momentos menos bons. Contrariar é preciso. Cada momento da nossa vida é precioso. Infinititude do universo! Interessante. Meu Amigo de há tanto tempo, sempre a inquietação. Um abraço imenso.
Obrigado Regina, amiga de sempre. A inocência que vamos esquecendo num tempo que vamos perdendo. Tão bom estares aqui. A minha enorme gratidão. Abraço
Lindo o que acabei de ler. A nossa passagem pela vida, tão bem observada. Ora nos falta tempo, porque tanto ainda há para fazer. Ou nos prendemos à infância, esse tempo maravilhoso e marcante, que jamais esquecemos. Dela falamos, tudo lembramos e tudo sabemos. Agora nada sei. Só sei que o tempo me foge e tão pouco, faço..
Adorei este excelente texto, sábio. Obrigada, querido escritor, vale a pena estar consigo.
Abraço grande.
Obrigado Maria Luiza, querida Amiga. É tão bom saber que gosta deste texto. Adoro o seu comentário. A minha gratidão. Abraço grande.
Leio-te .. e vejo-me nesses circuitos da nossa idade de crescimento, por entre nuvens e sóis de novidades, que nos traziam risos … ou gargalhadas de agrado pleno.
Estimado amigo com emoção …aquele abraço pleno de gratidão por partilhares momentos do teu criar, e alegrias ímpares do nosso “crescer”.
Obrigado, José Luís. Meu Amigo. Poeta. Conheces bem os nossos tempos, aventuras e desventuras. Tudo como tão bem descreves no teu belíssimo comentário. A minha gratidão. Abraço
Quando a cabeça não pára e o caminho a percorrer se torna mais curto que o percorrido, as memórias assaltam-nos desordenadas e o pessimismo assalta-nos como um pesadelo. É nessas alturas que devemos estar ainda mais atentos às “pequenas” coisas que trazem luz e cor às nossas vidas. Por vezes é difícil, principalmente quando se desejou um mundo bem melhor e se acreditou na possibilidade da Paz. Por vezes é mesmo muito difícil vencer o pessimismo e sentir alguma felicidade, nem que seja por momentos. Mas temos de ultrapassar essas dificuldades e permitirmos que aqueles que amamos nos vejam (e nos sintam) felizes. Temos de o ser. Por eles e, principalmente, por nós!
Obrigado Maria, minha Amiga. Tão importane o que escreceste. Tão assertivo. Tanta verdade nas palavras. Vamos lembrar esses momentos. A minha enorme gratidão. Abraço grande.
Excelente crónica. Belo regresso ao passado. As brincadeiras e jogos populares que enchiam o recreio da escola. As reguladas que punham as mãos vermelhas, de dor e frio. Os corajosos nsem dobrar, de cabeça erguida. Impensável nos dias de hoje.
A viagem ao passado. A perda de amigos que partiram para o desconhecido. Os lugares que visitamos. O belo que a vida nos deu e a doença tirou. O tempo em que cada dia é mais um dia, cada ano mais um ano. Passamos a ver o mundo de forma diferente. Cada dia é menos um dia, cada ano menos um ano.
Permanecem as memórias.
Obrigada Amigo, por esta partilha.
Grande abraço.
Obrigado Eulália, minha Amiga. Regressar ao passado, mas pendar sempre no presente e no futuro. Tão reconfortante o que escrrveu. A minha enorme gratidão. Abraço
eu sei que essa tua andança é a que te enche o coração.
essa de andares aos recuos e chegares
à carteira da escola.
os verdes e ternos anos.
uma espécie de branda nostalgia.
ao pátio. ao jogos.
de entreter os dedos,
as biqueiras amolgadas dos sapatos
e os risos que se acendiam.
até a palmatória era esquecida pois
o que importava era ser livre.
correr
saltar
dar cambalhotas
assobiar alto
tocar o inatingível.
rir por tudo e por tudo.
ser criança.
jogar na bola, entrar na brincadeira
não ter outro divertimento que trouxesse mais cor à vida.
e tudo era tão simples. assim.
os lugares habituais.
os nomes de trazer aconchegados
os rituais que se repetiam a cada dia
que estava de partida.
e se renovava.
pouco importava a esfoladela no joelhos
os trabalhos que ficavam para depois
o chegar no adiantado da hora.
pouco importava o ralhete da mãe.
o ar mais sisudo do pai.
o castigo que se impunha.
porque bem lá no fundo, haveria
algo mais venturoso do que aprender a felicidade?
Obrigado Mena. Tão bom estares aqui neste nosso espaço. A enorme festa da tua poesia. Sempre um presente, uma flor, um abraço. Tu escreves o que tens dentro de ti. Por vezes rasga-te. Sempre ima emoção. A minha imensa gratidão. Abraço grande.
Excelente crónica, Jorge.
Revejo-me …
Bora lá inventar estratégias para combater o pessimismo e cuidar da nossa saúde mental.
Obrigada pela partilha.
Abraço