Aprender
por Jorge C Ferreira
Eram manhãs que nasciam súbitas dos ventres das madrugadas. Um tempo que passávamos em claro. Não tínhamos dado que a noite tinha acabado. Só os néons e as luzes psicadélicas viviam nas nossas cabeças. Tão jovens e com tanta vontade de viver depressa. Assim nos enrolávamos com a vida. Os beijos eram intensos. Intensos foram todos aqueles amores perdidos.
Vir a casa, tomar banho, mudar de roupa. A farda para o trabalho. A outra vida que ia durar muitas horas. Até que os sinos da liberdade tocassem. Os nossos amores mais puros que nos esperavam. O namoro autorizado antes da vida começar. Por vezes dormíamos um pouco antes de iniciar a noite. Todos sabíamos uns dos outros. Uma espécie de telepatia. Os telefones eram fixos e tínhamos as cabines telefónicas. Os impulsos a contarem. O namoro a sair caro.
Havia quem fizesse da noite a sua vida. Gente que vivia o avesso da vida. Gente que prolongava os beijos pelas manhãs corajosas. Criar laços. Unir corações. As mãos coladas. Os encontros arrojados. Os que eram diferentes. Os que não tinham medo de assumir o risco de serem apontados a dedo. Gente com quem também partilhávamos lugares e mesas. O respeito mútuo. O saber estar. O fazer acontecer.
O tabaco e as bebidas. A música que estava na moda. A dança que se arrastava até ao fim da noite. As promessas. As cumpridas e as falhadas. As paixões clandestinas. O que não se contava a ninguém. A loucura de correr no fio da navalha. A música ao vivo. Os concertos inesperados. As vozes cansadas. Os solos rasgados. O fumo e o fogo e uma mulher que não era mulher e, no entanto, era um ser especial.
As ceias. Os bifes da madrugada. O ovo a cavalo. As batatas fritas. Uma dose reforçada de molho. Uma caneca de cerveja. Um pudim flan. Um café. Os sítios especiais. Os restaurantes da noite. Uma sopa de cebola num bar especial. Um músico cego num local que nunca fechava. E nós a percorrer mundo dentro da cidade. A aprender todas as maneiras de viver e sofrer. Uma meia com uma malha caída. Uma perna que se oferece. O pecado e a divina ilusão. A luz e a escuridão. Uma vela que nos alumia. A sensualidade de uns lençóis imaculados. Uma janela aberta para o rio.
Um cacilheiro que nunca apanhamos. “O homem do leme.” A zona sul. O vermelho vivo. O grito pela liberdade. Os que chegaram ao Barreiro e não atravessaram o rio. A cintura industrial. A força operária. Os capacetes. Os grandes estaleiros. A vontade de mudar. Um mundo bipolar. Os filhos dos doutores que iam estudar para doutores. Os filhos dos operários que tinham a fábrica à espera. Um mundo com diferenças imensas. As desigualdades que gritavam agonias. Muita mulher cansada e calada. Muito grito escondido. Muitas janelas fechadas.
Assim nos fomos formatando e mudando o nosso modo de vida. As guerras contra as quais lutámos moldaram-nos a coragem. Fomos aprendendo. Fomos crescendo. Aprendemos a gritar e conseguimos imaginar o mundo a mudar. Até que vimos tudo ao contrário e ficámos embriagados de liberdade.
O que nós mudamos durante a vida! Somos o caminho que fazemos. Os pés cansados.
«Que caminho o teu! Espero que tenhas aprendido com a vida.»
Fala de Isaurinda.
«Achas que não? Hoje sou um velho que gosta de pensar, ler e escrever e que nunca sai à noite.»
Respondo.
«Por vezes ainda tens umas manias…mas vá lá, dou-te o benefício da dúvida.»
De novo Isaurinda e vai, um sorriso trocista.
Jorge C Ferreira Junho/2022(353)
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Adoro a autenticidade da sua escrita.
Nela põe sempre a sua vivência e exprime de forma ímpar, como foi a sua juventude. Nesse tempo que também conheci.
Obrigada, a todos os que mostraram como era importante a Liberdade.
Um texto lindíssimo, onde a prosa dá o braço há poesia. Grata sempre, querido poeta. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Sermos fiéis ao que fomos. Escrever com prazer e dor. Ter a alegria de ter quem nos leia. Abraço
Faltavam horas aos dias vividos cheios de vontades. Apesar da feliz loucura da idade, a descoberta do amor, viver a sensualidade nem sempre terminada, iniciava o dia, trabalhar já era responsabilidade. A sensibilidade do que te rodeava. Saber dos Amigos e dos que não o eram. Gente que lutava e sonhava que um dia seriam livres. Demorou para fazer a festa. Dias sem tempo aconteceram. Vives intensamente o que acreditas e amas. Meu querido Amigo dificilmente serás velho. Um abraço enorme.
Obrigado Regina, minha Amiga. Viver a vida a correr. O sufoco. Estar em todo o lado. Amar e ser amado. Grato. Abraço
Que bela crónica. As memórias de uma vida. A juventude vivida intensamente, com a irreverência própria da idade. A luta pela liberdade.
Aprender a construir a vida.
Obrigada Amigo , por esta história de vida incrível,
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Só assim fazia sentido viver naquele tempo da imortalidade. A liberdade sempre o bem maior. Grato. Abraço
O teor bem apelativo do teu recordar, agarra o leitor do princípio ao fim, por entre novidades do ontem, hoje meros cenários de vidas vividas.
Permite-me dizer, quantos actos por mim vividos, estão em rigorosa sintonia das tuas memórias, e hoje ao lê-los surge uma emoção alegre e única.
Grande e grato abraço amigo que muito estimo e admiro!
Obrigado José Luís, meu querido Amigo. As vidas paralelas. A loucura. A vontade imensa de liberdade. Um enorme Abraço.
Fomos os jovens que primeiro sorveram a liberdade. Tão grande a sede! Tão tamanha a euforia de cair na tentação. Tão voraz a fome de provar todas as degustações! Tão novo o mundo que abraçávamos…
Era um tempo de paraísos e pecados originais. Era um tempo de descobrir e erguer “padrões”. A ocupação de outros ideais.
Uma liberdade que se fizera à custa de servidão.
Fomos para a rua aprender o jogo da vida.
Éramos peões, cavalos e reis. Peças de um xadrez que se mantinha manipulado pelos senhores do capital e por aqueles que continuavam a sobreviver na mó de baixo.
Os filhos das famílias “aristocráticas” e os que eram oriundos de uma classe quase analfabeta e sem direitos. Os uns e os outros. Os
que tinham nome de nascença e os sem-berço.
Mas tínhamos acordado. Tardiamente. O sonho transbordava. Queríamos continuar a gritar palavras de ordem, a fazer renascer a revolução e a moldar um mundo melhor…!
O cronista subiu à tribuna. Não por vaidade ou por arrogância mas porque não podemos, não devemos esquecer.
As memórias avivam consciências.
A luta não chegou ao fim. Ainda há tanto para fazer.
Tanto para transformar. Tantos padrões para erguer. Tantos sonhos para não deixar sucumbir!
Aprender.
Ser uma geração de filhos de abril que aprendeu e quer passar o testemunho.
Reaprender.
Obrigado Mena. Sempre belos os teus comentários. Textos que me fazem feli e me põe a pensar. A enorme euforia da liberdade. Abraço grande
Bom dia, Jorge.
Revivi cenas do meu passado produzidas no papel-químico, tal e qual.
São a nossa imortalidade!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Sim, coisas que viverão sempre em nós. Nunca iremos esquecer. Grande Abraço
Uma crónica bela de memórias e de um tempo outro (??!). Anterior à liberdade.. Aliás, dois tempos: o individual e o socio polĺtico. Em conflito. Em luta! Uma juventude a lutar pellos ideais e a viver intensamente em dois polos. Tempos difíceis e que marcaram a memória colectiva e individual. Transformaram estes homens em heróis. Situações vividas que se inscrevem nas suas personalidades.
Era criança. Não me apercebi. Não vivi esses tempos. Capto-os pelo que leio. Pelo que li.
Sei que me foi possível estudar porque Abril aconteceu. Filha de “operários “. Que se torna ” doutora”. O meu obrigada a todos o que possibilitaram um percurso académico que me estaria vedado. O meu obrigada ao autor desta crónica.
Obrigado Isabel. Grato pela leitura que fez desta crónica. Sim, novos caminhos surgiram. Eu éque lhe agradeço a sua força e o seu caminho. Abraço
ADOREI. Não escreverei muito por falta de tempo, mas és tão autêntico que brota poesia, sempre, quando escreves. Expões-te no tempo e nos espaços. GMT. Beijinhos amigos.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Como és generosa nos teus comentários. Escreveste pouco e disseste tanto. Abraço enorme