Crónica de Jorge C Ferreira | Uma Deusa

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Uma Deusa

 

Não sei quantas praias viram o teu corpo despido, quantos areais ainda têm a forma do teu corpo, quantas vidas deslumbraste. Eras a senhora do fim do dia. Quando a luz se queria apagar. Eras quase noite, eras lua. Entregavas o teu corpo inteiro à água e ao luar. Despias o pouco que te cobria e entravas na água. Eras a outra luz da noite. Saías das dunas de uma forma ligeira e subtil. Procuravas os recortes da noite. Quando deslizavas nas águas os peixes acompanhavam-te, uma guarda de honra que adoravas. As tuas praias eram recantos silenciosos. Sítios de ninguém. Espaços perdidos no espaço. Tu, a Lua e a sagrada gente. Povos antigos que se faziam de cegos.

Disto só tive conhecimento através de um pescador da noite. Um homem branco como a Lua. Os dedos cortados pelos fios de nylon. Muitas vezes, disse-me, tentou pescar a Deusa da noite. Nunca conseguiu. Não tinha capacidade nem isco para tal. Estava sentado numa rocha e contava-me isto enquanto grossas lágrimas deslizavam pelo seu rosto. Um novo rio a correr para o mar. Perguntei-lhe se ela ainda viveria. Respondeu-me prontamente:

«Uma Deusa nunca morre, os nossos olhos é que podem perder a capacidade de a ver.»

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Sim, para ele ela era uma Deusa. Algo intangível. Ele só tinha tido a sorte de lhe ter sido concedido o dom de a conseguir ver. Porque tinha sido ele o escolhido? Nunca soube. Passava todas as noites na praia a tentar pescar peixes que não queria. Ainda hoje lá vai. Quando lhe pergunto a idade, diz-me que não sabe, que lhe tinham contado que tinha nascido numa noite de Lua Cheia e a ela tinha sido oferecido todo nu. «Mas foi há tanto tempo!»

O tempo que mata o tempo, vai fazendo e desfazendo estórias, lendas e estranhos acontecimentos. Procurei os pescadores mais antigos e a pouca gente que ali habitava. Conheciam o velho pescador, para eles era um pescador de luas. Um sonhador de olhos especiais. Quanto à Deusa que à noite mergulhava toda nua no mar, ninguém alguma vez a tinha visto. Acreditavam, no entanto, que só os olhos daquele homem especial seriam capazes de ver tal coisa. «Ver ou imaginar.», disse um pescador mais céptico sobre tais acontecimentos. Logo outro lhe respondeu: «olha que eu já vi coisas muito estranhas no mar, são muitos anos de faina.» «Muitos vêem e têm medo de contar, superstições, ou medo de serem gozados.», disse outro.

Aprende-se tanto a falar com esta gente. É aí que faz mais sentido a liberdade e a sensação especial que sentimos quando nadamos todos nus no mar salgado e cavalgamos as ondas como se fosse um voo especial. Cavaleiros inebriados pelo cheiro a maresia. Hipnotizados por peixes desconhecidos.

O mar é o nosso berço e o nosso refúgio. Para muitos a última morada, o último mergulho. Só assim se percebe a quantidade de pessoas que quer que as suas cinzas sejam atiradas ao mar. O Mar é um fascínio, pode encantar-nos. Muitas vezes não descortinamos mais nada além dele. Somos nós e ele e uma intensa e silenciosa conversa.

«Agora isto! Mas que Deusa é essa que inventaste?»

Fala da Isaurinda.

«Pode não ser Deusa. É um ser especial. Uma estória que me apeteceu escrever.»,

respondo.

«Sabes, que te digo? Estás a ficar tontinho de todo. Que Deus te proteja.»

De novo Isaurinda, e vai, as mãos ao alto.

Jorge C Ferreira Agosto/2024(446)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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11 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Uma Deusa”

  1. Regina Conde

    A Deusa está viva. Os pescadores de mãos marcadas conhecem as luas as marés e no silêncio do mar confidenciam as paixões. Quem é Poeta apaixonado pelo Mar conhece estes sentires. Abraço imenso meu Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Regina, minha Amiga. Muito obrigado. Sim, há seres especiais e sentimentos que não morrem. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Só pessoas especiais, sabem falar de Deusas, da lua e dos mistérios do mar. Que estória de encantar nos oferece. Tanto se aprende consigo, meu gentil escritor, que desta arte tanto sabe, é encantadora a sensibilidade e a imaginação que habita em si. Adoro e admiro-o muito, nobre e doce poeta. Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria Luiza, minha Amiga tão especial. É sempre reconfortante ler os seus generosos comentários. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  3. Eulália Coutinho Pereira

    Lindíssimo! A poesia a envolver a Deusa misteriosa, nascida em noite de lua cheia. O mar que agita e tranquiliza. O mar que guarda mistérios. O mar que faz sonhar. As deusas que aparecem em noites de luar.
    Envolvem-se e dançam em total liberdade.
    Gratidão Poeta pela beleza dos textos que partilha.
    Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Muito obrigado, Eulália, minha Amiga. As danças das Deusas são um fascínio que vive na nossa imaginação. O Mar o lugar perfeito para sonhar. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  4. Mena Geraldes

    há quem diga que nasceu de dentro
    do mar, galga pelas ondas, povoa as mãos, olhos e almas dos Escolhidos.
    tem a voz guardada nas lembranças da noite e se falasse teria o rumor
    das algas,
    dos sóis antigos e das nuvens que sobem do mar.
    traz no corpo o voo dos pássaros, escamas de prateados peixes
    a forma das flores que são visitadas pelas chuvas e
    tem cabelos de água, lisos e macios da cor da fundura dos sonhos.

    ainda há quem fale dela. como lenda.
    quem saiba da sua pele de veludo
    das pegadas que deixa nos areais, junto à espuma salgada das ondas
    na transparência de luz e luar e no calor que emana do perfumado
    corpo.
    quem murmure que desliza tranquila
    e se deixa afundar respirando por guelras e conhecendo de cor todas
    as cíclicas marés.
    regressa dançando no tempo das cheias luas e das algas vermelhas, brancas e azuis.
    vai. feita de silêncios e de paz
    de lágrimas ovais como pérolas, de risos pequenos suspensos no ar e
    só não aprendeu a voar porque escolheu o verde do mar.
    é a Deusa.
    como nos sussurra aquele que escreve.
    o das mãos grandes, dos olhos que brilham
    o dos sonhos quase solitários.
    o das palavras inteiras e das frases curtas.
    o que cria raízes, contempla o coalho das estrelas
    sabe como ninguém a lenda da
    Deusa que o pescador lhe contou num misto de êxtase e encantamento….

    1. Jorge Ferreira

      Muito obrigado, Mena, minha linda Amiga. O teu talento é imenso nos Piemaa com que comentas os meus textos. A minha eterna gratidão. Abraço grande, grande.

    2. Jorge C Ferreira

      Mena, minha linda Amiga, que bom é ler os belos Poemas com que me comentas. É tão reconfortante. O teu talento tem cores maravilhosas. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  5. José Luís Outono

    Fabulosa “história” dessa Deusa apelativa … senhora de tanta criatividade, como a tua escrita em mais um episódio.
    E o Mar … a força mais bela da natureza, mesmo quando está zangado, é o anfitrião perfeito de um sonho, como receptor dos nossos poemas de uma vida, ou o lado feliz de um respirar pleno de felicidade!
    Excelente traço em redor de uma Deusa, que seguramente te rasgou sentires e desvendou vontades.
    Loucura perfeita, opinou Isaurinda, face a rasgos continuados de parágrafos sedentos de leitura, e sorrisos de agrado.
    Não é por acaso, que defino o Mar como irmão, num crescer de filho único , em sonhos muito concretizados de “diálogos” e “segredos” trocados em marés agitadas e bem iodadas… ainda hoje!
    Grande abraço estimado amigo, que muito estimo … ao ler palavras do teu partilhar livre e sedutor!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, José Luís, meu Amigo, Poeta. Ter a tua opinião neste espaço, é muito reconfortante. O modo assertivo como te expressas é maravilhoso. A minha gratidão. Abraço enorme.

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