Crónica de Jorge C Ferreira | Sobre o silêncio

Jorge C Ferreira

 

Sobre o silêncio
por Jorge C Ferreira

 

Entrar no espaço do teu silêncio. Tua vida. Teu voto. Teu encantamento. Teu modo de ser e viver. Tua euforia calada. Uma rajada de vento e um mar que se mergulha em si mesmo. Silêncio que não cansa. Silêncio que liberta. Uma festa de paz. Apenas a música que a natureza nos oferece. Uma oferenda onde nasce e cresce um modo diferente de felicidade. A alegre entrega. O mistério que cresce.

Passei a viver nesse espaço. Os pinheiros e um animal que se faz ouvir ao longe. Esse ruído salvador. Os nossos passos que caminham sobre outras vidas desvividas. Sabemos que o caminho vai dar sempre ao mesmo lugar. A tentação do círculo perfeito e os lábios enxutos. Caminho que nos leva ao pensamento mais profundo. À luz mais intensa. Uma ligação inteira e única. A calma que cresce.

A floresta é imensa. O mar ao fundo. A estupefacção perante o belo. Uma pedra enorme que nos convida a sentar. Descansamos os pés. As sandálias com saudades dos pés. O tempo de falar connosco. Tudo num silêncio profundo. Hábito que cresceu em nós e em nós continua a viver. Assim é feita a entrega de tudo o que temos. Temos muito pouco. As vestes até que se rasguem. As sandálias até que se gastem.

Aconchegamos de novo os pés e continuamos o caminho. Caminho que conhecemos e sabemos de cor. O corpo segue os pés. Na cabeça pensamentos que nos fazem crescer. Minha vida calada e umas pedras gastas de tanto caminhar sobre elas. Pedras anúncio de outros modos de vida. Pedras cansadas. Pedras caladas. Pedras calcadas. Pedras lisas. Pedras usadas.

Não sei se alguém vai deixar de caminhar. Se alguém se vai fartar de tanto silêncio. Há quem faça da gestão dos silêncios uma arte. Há quem dos sons da natureza faça uma banda sonora. Os animais fazem-se ouvir de novo. Não sei se incomodados pelo nosso silêncio. Começa a crescer a noite. Recolhemo-nos. Cada um em seu sítio. Um lugar para ler, pensar e descansar.

Assim arrumamos os pensamentos do dia. Assim nos compomos numa fita de celulóide muito antiga. Uma caixa de lata. Somos o cinema mudo na sua pureza. Apenas a tal banda sonora. O vento que abana as árvores. O marulhar de ondas insaciáveis. O uivo dos lobos num nevoeiro que nos entra nos ossos. Nos enche os ouvidos de uma música feérica. Como que um chamamento. Viver na toca dos lobos no alto da montanha. Tudo nos passa pela cabeça.

Não há nenhuma virtude neste caminho calcorreado. Continuamos a pensar. A ser animais no mais fundo de nós. Podemos não falar. Nunca deixaremos de pensar. De pensamento em pensamento crescemos em noites de luares imensos. Somos outros. Há qualquer coisa que nos atrai para um grito descontrolado. O voto não o permite. Os livros são antigos e escritos por gente que deve ter estado, muito tempo, só consigo mesmo. Notamos isso pelo que vamos escrevendo em folhas soltas ao lado dos livros já gastos. Quantos dedos terão passado por aquelas páginas? A quanto silêncio estes livros obrigaram?

Talvez chegue o dia em que falaremos!

«Mas onde é que tu andaste? Olha para o que escreveste! Estás mesmo mal.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes, podem forçar-nos a calar, mas a pensar nunca!»

Respondo.

«Era o que faltava! Trata-te.»

De novo Isaurinda e vai, o indicador a rodar na testa.

Jorge C Ferreira Outubro/2022(368)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Partilhe o Artigo

Leia também

35 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Sobre o silêncio”

  1. Uma prosa cheia de sabedoria e que nos inspira a alma.
    Continue assim…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Patrícia. Que bom estar aqui neste espaço de partilha. Grato pelo generoso comentário.

  2. Cristina Ferreira

    Amo a tua escrita.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Amiga generosa. Fico sensibilizado. Grato é este meu Abraço

  3. Raquel Lameirão

    Gostei muito!!! Obrigada por mais esta excelente partilha de sentimentos tão poéticos que provocam encantamento a quem os lê!!
    Abraço e boa noite!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Raquel. É sempre umgosto ter a sua presença neste espaço. É sempre importante a partilha. Muito grato

      1. Ferreira Jorge C

        Abraço

  4. Regina Conde

    Caminhemos um pouco em silêncio, onde as nossas fragilidades florescem, os valores da vida se fazem ouvir. Fórmulas químicas surgem, caminhos inesperados, acreditámos que a história não se repete. Continuamos em silêncio, surgem pensamentos de generosidade.
    Retomamos os afectos, comunicamos pelo olhar. Cronica sem limite de pensamentos que irradia luz. Assim nos iluminas o caminho em silêncio. Abraço enorme Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Caminhar é importante. O silêncio é a alegria imensa que, por vezes, procuramos. Momentos essenciais da vida. A minha gratidão por estares a caminhar neste espaço.

      1. Ferreira Jorge C

        ABRAÇO

  5. Maria Matos

    Maria Matos 19 Setembro 2022
    Desta crónica, sobre o silêncio, só posso citar uma frase que li no texto.
    “ a minha estupefação perante o belo”
    Vou tornar a lê-la, de tanto que gostei!
    Obrigada poeta !

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos. O silêncio é de uma importância imensa para descobrir o belo. É do silêncio que emergem as coisas belas. Muito grata pela sua presença.

      1. Ferreira Jorge C

        Abraço

  6. Eulália Coutinho Pereira

    sublime. O poder do silêncio. O silêncio que comanda o pensamento. Tão longe vai o pensamento, envolvido pelo turbilhão de emoções,que o silêncio nos transmite.
    Obrigada Poeta, pela extraordinária reflexão que a sua escrita transmite.
    Um abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Encontrar o silêncio no meu da multidão. Saborear os momentod mais sublimes da beleza. Caminhar e acreditar. A minha maior gratidão pelo seu comentário neste espaço.

      1. Ferreira Jorge C

        Abraço

  7. Filomena Geraldes

    ” Só de pensamento em pensamento crescemos em noites de luares imensos”
    Jorge C. Ferreira.

    há um sangue bastardo que me corrói por dentro.
    mistura de solidões. estátuas descarnadas.
    foi-me cortada a voz com uma lâmina de dois gumes.
    há demasiadas flores apodrecidas sobre silenciosas campas.
    se nem o mar me traz sua voz…
    lá fora o ar pesa como chumbo.
    as aves desconstruiram as asas.
    desintactas as nuvens.
    que pena é esta?
    que corda na garganta?
    que finitude?
    não, não me ofereçam vocábulos se os não posso proferir.
    que mascarado pesadelo é este?
    se nem o mar me traz sua voz…

    deixai brotar os pensamentos.
    criativos.
    versados.
    adestrados
    aquietados.
    iluminados.
    esclarecidos.
    desassombrados.
    LIBERTOS!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Os teus comentários são sempre poemas imensos que nos remetem a um silêncio intenso. Escrever sobre eles é uma grande responsabilidade. É perante o silêncio que a tua escrita cresce e nos leva ao belo. A minha vénia grata e silenciosa. Abraço

  8. maria fernanda morais aires gonçalves

    Estarmos sós! um direito que nos assiste desde o dia em que nascemos, “Sós” e sabemos que vamos morrer um dia “Sós”.
    Então eu diria que a canção já velhinha veio para ficar Silence is Golden. Desde o berço que fomos aprendemos . Foram as nossas mães que nos ensinaram quando nos embalavam para dormir e cantavam uma melodia baixinho e diziam escuta agora vais adormecer. Depois veio o banco da escola e para aprender era preciso parar o ruído e escutar a lição.E assim fomos habituando a Ser.
    Erling Kagge diz no início do seu livro “Silêncio na Era do Ruído”, que os segredos do Mundo se escondem dentro do Silêncio.
    Eu acredito neste conceito. Estamos todos a viver uma época de guerra com muito ruído e o que todos ambicionamos é um pouco de silêncio e muita Paz.
    Grata ao escritor Jorge C Ferreira por falar em Silêncio,

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Que belo o teu comentário. Depois falas de um livro que me aconselhaste e eu li e adorei. Nós conhecemos o silêncio e sabemos adorá-lo. Somos adoradores do belo. Estares aqui é um alegria imensa que guardo em mim. Grato. Abraço

  9. Maria Luiza Caetano Caetano

    É divina esta prosa poética. Só um filósofo pensa assim. Não quero nem devo perturbar a beleza do seu silêncio, Mestre das palavras. Adorei,
    Grata por ser meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Também no silêncio nos entendemos. O silêncio que nos leva à alegria. A sua presença aqui é essencial. Muito grato

      1. Ferreira Jorge C

        Abraço grande.

  10. maria rosa matos

    Toda a sua escrita Jorge, é uma Excelsa Poesia.
    Abraço de gratidão por estes belos momentos.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Rosa. A sua generosidade é enorme. A gratidão é toda minha pela sua presença neste espaço de partilha. Abraço

  11. António Feliciano Pereira

    SILÊNCIO!
    Um poema em prosa numa dimensão tão grande e tão
    veloz como o pensamento.
    Local de encontro: na nossa intimidade, no recolhimento das nossas divagações.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. No silêncio encontramos muitas respostas para o nosso Ser. Veloz é a tentação da busca do belo. Aqui, neste espaço, também nos encontramos. Um silêncio partilhado. A minha gratidão. Abraço

  12. José Luís Outono

    Prosa poética de um sentir secreto, pensando na liberdade de o revelar.
    Tão intenso e apelativo “conversar” a sós num caminho do ontem, mas rubricado no hoje.
    Pleno de uma beleza ímpar.
    Sinto-me orgulhoso da tua amizade, e admirador dos teus traços.
    Nunca pares!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, Poeta. O orgulho é recíproco. Um orgulho enorme pela tua presença neste espaço. Espaço que quero que seja de todos nós. A minha gratidão. Abraço

  13. Isabel Soares

    Uma crónica poema. Um escrito sobre a linguagem do silêncio. Um espaço de habitação com o outro numa comunhão afirmada sem palavras. Numa relação pensada e a pensar num percurso aliado a uma paisagem “bela”. Esta e o pensamento dos amantes e companheiros que escolhem o registo do silêncio como aliança de vida de dois seres que juntos caminham amando a natureza e amando-se. O silêncio como o único modo do pensamento acontecer e uma relação assente nele.
    No silêncio partilhado onde o espaço do amor e da individualidade acontece.
    O escritor, creio que ou propositada ou inconscientemente omite o termo sentir, mas este texto, numa arquitetura silenciosa, esbanja sentimentos. Sentires. A ligação entre a mente e o corpo. Insidiosamente vamos lendo estes sentires que o pensamento não dito impede. Um escrito onde as palavras captam o silêncio da essência da vida. Duas vidas e as suas individualidades. É aí, quando se percebe o cerne, anula-se o silêncio, ainda que para o agarrar, dizendo-o. O não-dito transforma-se num dizer. Se não para o próprio para o outro. E é a linguagem, são as palavras a possibilidade de o afirmar ( e sentir), de lhe dar existência. Sem estas não há ” silêncio” ou pensamento. Este constrói-se na e pelas palavras, silenciosas ou verbalizadas.
    Um texto a exigir uma hermenêutica outra. Mais uma vez uma escrita essencial onde deslizamos entre o indivíduo e o todo em que se insere.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Todos os seus comentários aprofundam os pensamentos que pululam nos meus textos. Uma maravilha que vou lendo e amando. A sua presença neste espaço é muito importante. A minha enorme gratidão. Abraço

  14. Cecíliamvicente@gmail.com

    Quando nos toca, silenciamos, apenas o olhar percorre a escrita. Silencio e vibrações, palavras esvoaçantes, tanto, e, muito de todas as palavras que são de todos e todas as folhas que brisam o silencio. Obrigada, Jorge pelo muito que ofereces. Abraço !

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. A importância do silêncio com que leio os seus comentários. Tão bom ter a sua presença e tão importante aqui. Belo o que escreveu. Grato. Abraço

  15. Fernanda Luís

    “Sobre o silêncio”
    Remeto-me ao silêncio para homenagiar o belo da sua crónica. Não quero provocar-lhe danos.
    Amei, amei, amei…
    Parabéns Jorge e aquele abraço.
    Fernanda L.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda Luis. Obrigado pelo seu bonito comentário. Honremos o silêncio. Muito grato pela sua presença neste noso espaço. Abraço

Comments are closed.