Outros Tempos
por Jorge C Ferreira
Não sei quantos passos dei por aquelas ruas. O meu bairro que percorri em todas as direcções, em todos os sentidos. Os proibidos e os autorizados. Meu bairro, hoje multiétnico. Bairro de todas as nações, raças e credos. Bairro vida. Bairro celebração. Bairro ilusão.
Foi este meu bairro que decidiu as eleições em Lisboa. Podem não acreditar, mas achei-me importante. O meu Bairro, que nunca teve marcha popular, tinha decidido a vida da cidade grande.
A igreja onde recebi todos os sacramentos. Descia uma rua e estava lá. Perdi a alva com que ajudei à missa. Acólito de missas solenes e lava-pés. Do baptismo até ao crisma foi ali que fui crescendo. Até ao dia em que a fé me abandonou. Não me questionem sobre isto, nunca vos saberei responder. As coisas da fé não se discutem.
Quase ao lado, um ferro-velho. O cartão e os jornais. As latas, e tudo o que era desnecessário para a maioria, fazia o negócio de outros. Por cima, o registo civil. Com os seus livros de antanho. Que estranha convivência. Não acham?
Uns tantos prédios abaixo da minha velha casa, e ao lado dos bombeiros da Cruz de Malta, a minha velha escola primária. A escola primária n.º 14. Escola com muita história. O recreio de esfolar joelhos e as impecáveis batas brancas. O professor Torres, o professor Trindade e o professor Costa. As letras todas. As canetas de madeira com aparos que se tiravam e punham. Os tinteiros. Os mata-borrões. A madeira castanha das carteiras. O companheiro de carteira. As reguadas e a fotografia do ditador ao lado do crucifixo.
Sim, tive um triciclo azul. Ia com o meu pai e pedalava até ao Jardim Constantino. No jardim tinha meninas que brincavam a outras coisas. Eram filhas de toureiro e tinham nome de passes de capote. Era um jardim bonito e cuidado. Ali pedalava sem tino até o cansaço me tolher. Muitas vezes o meu pai carregava o triciclo na volta e eu caminhava solto e contente.
Em frente da minha casa, uma quinta enorme. Isto no centro de Lisboa, que na altura era chamada de Capital do Império. O tal País onde o sol nunca se punha. Era isso que nos era incutido na escola onde nos ensinavam a cantar uma série de hinos. Mas essa quinta, que pertencia aos Serviços veterinários do Exército, e que por sorte estava à guarda de um sargento, que tinha um filho da nossa idade, era a nossa liberdade inteira. Ali encontrávamos outra vida. Jogávamos à bola e muitos outros jogos. Sabíamos que a mãe ou a avó de algum de nós vinha sempre à janela espreitar o que fazíamos. Um controlo absoluto.
Não sei o que foi feito do meu triciclo azul. Tenho saudades daqueles passeios com o meu pai. Tenho saudades dos livros que o meu pai comprava numa loja de velharias que ficava a caminho de casa. Tenho saudades da Alameda onde não podíamos jogar à bola, e da fonte luminosa até onde íamos nas noites de verão.
Meu bairro que ainda subsiste. A Igreja nova. Uma igreja mais despida. Mais crua. Algum despojo. Na minha rua falta o prédio onde nasci. No seu lugar sei que existe um prédio novo. A quinta desapareceu e foi plantada de cimento. Prédios agarrados a prédios. Nunca mais visitei aquela rua. Talvez lá volte.
«Hoje estás um pouco triste. Só te lembras de coisas antigas.»
Fala de Isaurinda.
«Sabes, por vezes temos de regressar ao passado. Nunca devemos esquecer o que fomos.»
Respondo.
«Hoje tenho de te dar razão. Somos o que vivemos.»
De novo Isaurinda e vai, o polegar a apontar para o céu.
Jorge C Ferreira Agosto/2022(359)
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Ohhhhhh … Um privilégio, acima de tudo, agora foi um carinho. Gostei muito, muito ❤️
Isabel. Beijinho
Somos realmente o que vivemos, somos muito do que os outros nos dão a contar das suas vivências, somos muito e tanto do que levamos dos amigos que connosco caminharam vida fora. Somos como somos pela lealdade, pela sensibilidade, pelo amor que deixamos entrar, somos muito de tanto e de tudo que carregamos como bagagem, para tal há que reconhecer a dualidade da vida que nos leva em viagem ou viagens onde o sol nos sorri mesmo quando a sombra, a nossa sombra vislumbre nuances nubladas, ou quando o arco íris nos mostra horizontes para além das lágrimas que lavam a alma trazendo com elas a bonança do sorriso. Obrigada, Jorge por partilhares o inicio, o meio, o sempre presente até ser futuro. Abraço!
Obrigado Cecília. Que bom estar aqui de novo. As suas palavras são sempre uma dádiva. Espero nunca a desapontar. Conte sempre com a minha lealdade, solidariedade e gratidão. Abraço
Sabe como adoro as suas histórias lindas, que tão bem descreve.
Impossível esquecer a nossa infância, as nossas raízes e o lugar onde a vivemos. Compreendo a sua relutância em não querer visitar o lugar, onde nasceu, cresceu e se fez homem. Difícil esquecer o sótão onde se refugiava para escrever. Já nessa altura, o dom da escrita vivia em si.
Maravilhoso lembrar o pai e as passeatas, até ao Jardim Constantino, onde algumas vezes brinquei.
Brinquei mais, no Jardim dos Anjos o mais próximo de casa.
“Outros tempos.” Que não voltam mais, Tantas saudades, dos afectos e do carinho, que nos faziam felizes.
Gratidão meu Amigo, pela sua adorável partilha.
Obrigado Maria Luiza. A nova tenra juventude. Afinal tão perto. Coisas que não esquecem. Aa mãos dos nossos pais tão grandes. Abraço
Belíssima crónica de memórias de um menino sensível ao que o rodeava. Outras práticas menos agradáveis. Afinal todas memórias. Lembrei-me de alguns períodos da minha infância, os que guardo com muito carinho, aquele mesmo jardim, de mão dada com o meu pai. Os livros que o meu pai me comprava na feira do livro, nos alfarrobistas. Curiosamente fortes memórias que neste período da minha vida são preciosas. Vamos viver as memórias que nos fazem bem. Obrigada pela crónica Jorge. Um abraço imenso. Sempre!
Obrigado Regina. A nossa infância. A pureza, a ingenuidade. A alegria com pouco. O amor que nos deram e não esquecemos. Abraço
Maria Matos
Que maravilha lembrar-mó-nos da nossa infância… dos passeios, de tufo o que nos ficou registado.
Como a sua crónica me fez lembrar, com saudade, tempos passados… tão bons, tão agradáveis.
Agravo-lhe Jorge…
Excelente crónica. Bela e emocionante viagem no tempo. “Somos o que vivemos” grande verdade.
Também eu entrei nas minhas memórias.
A mesma geração, realidades diferentes, mas tanta coisa igual. Entrei na sala de aulas e também eu vi o crucifixo ao lado do ditador. Batas brancas. Os recreios. Jogos tradicionais.
Infância feliz em tempos difíceis.
Hoje percorro as ruas daquela pequena vila de com muita nostalgia. Muita coisa mudou.
Ficam as memórias que construíram a minha vida.
Obrigada Amigo pela excelência da sua escrita.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Que bom ter-lhe feito recordar tudo isso. Sinto uma alegria imensa. Muito bom estar aqui. Abraço
Obrigado Maria Matos. Nesses tempo em que todas as descobertas eram maravilhosas. Estou muito feliz que tenha vindo até este espaço. Grato pelo seu comentário. Abraço
Momentos do nosso viver, que “acolhemos” em pensamentos desafiadores, e reflectimos em sorrisos, saudades ou entendimentos de postura actual.
Li-me nesses inícios, onde o catolicismos, após o baptismo evoluiu até à comunhão solene e catequista até metade da minha segunda década. Mas o meu sentir por olhares e convicções disseram-me o que queria ser, e libertei-me até hoje!
Curioso, ainda há pouco passei no bairro da Ajuda e fui “visitar” a vivenda onde a “semente” cresceu. A emoção tocou-me!
Tónicas do nosso viver, que escreves maravilhosamente fazendo ligar os nossos momentos em comparação com os teus. E , no final, o diálogo com Isaurinda é um código tão apelativo do teu criar, que ansiamos depois da leitura.
Bravo amigo, que muito estimo e admiro … próximo!?
Grande abraço!
Obrigado José Luís, Poeta. Sim, todos os iniciáticos passos. A descoberta. A ternura de quem cuidava de nós. Abraço
A tua escrita tem um encanto especial que mesmo já conhecendo muito do que aqui escreveste, é sempre um ternurento prazer a sua leitura.
Sublime.
Obrigado Cristina, minha generosa Amiga. É sempre uma grande alegria ter e ker aqui os teus comentários. Abraço
Essa da fé te ter abandonado dá pano para mangas 😉 eu até acho que continuas um homem de fé porque não te desvias dos teus objetivos. Escrever, por exemplo. Fé, é também acreditar que vale a pena. O resto, o que abandonaste não faz a fé por inteiro.
Ahhh … Lembro-me de outro escrito sobre o triciclo azul. Olha como sou antiga 😍😍😍
Obrigado Isabel. É melhor não discutir a fé. Sim, já nos conhecemos há muito tempo. Sempre a lealdade. És uma boa Amiga a quem emprestaria o meu triciclo azul. Abraço
Ohhhhhh … Um privilégio, acima de tudo, agora foi um carinho. Gostei muito, muito ❤️
Uma bela crónica de memórias ( fabulosas). Uma narrativa sobre as raízes. Sóliidas. Sem as quais não há chão. Um retrato singular e social que nos transporta para esse tempo e lugar como se o tivesses vivido também. Uma realidade pessoal inspiradora e nostálgica.
Um texto que nos impele às nossas memórias de infância: tão diferentes e uma geração mais tarde talvez. Que abismo. Que desejo do mesmo. Da riqueza afectiva, individual e social a incorporar todo o texto. Que partilha poderosa.
Obrigado Isabel. Que bom estar de volta com os seus brilhantes comentários. Escreveu tudo e contou a vida. A minha gratidão por isso. Abraço
Muito obrigada! Abraço
Obrigado, eu. Grande abraço
Memórias de outros tempos que nos ficam agarradas à pele. Mesmo que não nos lembremos de tudo, elas ficam lá. Há quem precise de se libertar de algumas para prosseguir a vida sem pesos.
Na nossa infância, vivida em tempos de ditadura, confundia-se muitas vezes respeito com medo e submissão. A liberdade chegou alguns anos mais tarde. E o tempo que demorou até chegar deixou marcas profundas em muita gente.
Não sei se será uma boa ideia voltares a visitar aquela rua…
Por vezes é melhor ficarmos com a imagem que as memórias nos deixaram e não as confrontarmos com a realidade.
Obrigado Maria. Sempre um prazer imenso ter a tua presença neste espaço. A tua perspicácia é precioso. É isso tudo que dizes. Nada a acrescentar. Abraço