Crónica de Jorge C Ferreira | O valor das coisas

Jorge C Ferreira

 

O valor das coisas
por Jorge C Ferreira

 

Aprender o valor das coisas. Saber do valor das pessoas através dos seus princípios, através das suas acções. Tudo tem um valor. Não falo de valor material. Falo do valor que existe dentro de cada um de nós. Do que somos capazes de fazer pelos outros. Do quanto nos entregamos ao outro. Da verticalidade. Da hombridade. Da força enorme que brota de cada mulher. Do seu sublime fruto.

Os amores incondicionais, o cordão umbilical que teima em fazer-se sentir. As verdades e as mentiras. A vontade e as vontades de se sentir liberto. O tempo a ganhar tempo ao tempo. A casa que nunca é nossa. Um castigo para a vida. Um móvel que nos lembra o passado. Um pensamento que custa a chegar ao futuro. Ninguém sabe do saber de uma mulher que se abraça num choro compulsivo. São sempre belos os olhos das mulheres, mesmo quando inundados de lágrimas.

Há pessoas que têm asas. Pessoas que são capazes de voar. Há outras a quem as cortaram e a quem impediram de serem o seu caminho. Voos e quedas abruptas. Os castelos nunca alcançados. A vontade eterna dos homens. Homens que são capazes de amar e matar. Essa diversidade de sentires que nos habitam. Como é possível matar a sangue-frio? Não, nunca se mata por amor. Mata-se por esse sentimento horrendo de posse. Como se ser dono de algo tivesse alguma importância. Ninguém é dono de ninguém.

Há quem se mate por paixão. Paixão que tem tanto de belo como de doentio. É felicidade única e sofrimento cansado. Alegria viva e festa acabada. Há quem se mate por estar farto da vida. Há quem se mate porque acha que já é tempo. Há quem se mate porque sim. Também há quem queira viver, sobreviver e tudo faça por isso. Todos procuram um caminho na vida. Muitas vezes a vida não lhes responde. A inclemência do sofrimento.

Há quem nunca chegue a saber o valor da vida. O valor dos afectos. Sinta o amor. Saiba o que é uma cama lavada. Vidas que se perdem em caminhos sinuosos. Pessoas a quem ninguém ensinou a caminhar. Muitos já filhos de homens perdidos em escadas de descer. Mulheres que dobram esquinas. Carros que param.

Há quem caminhe muito e nunca chegue ao mar. As botas gastas. A roupa coçada. As frieiras nas mãos. Gente do frio e do fogo. Um cão por companheiro. Um cajado que é companhia indispensável. Os animais perdidos num monte de onde o verde desapareceu. Andanças sem paragens. Paragens sem sinais. Gente sem mapas. Peregrinos do sal.

Perder tudo num golpe de nada. Sentir que a vida não faz mais sentido. As depressões profundas. Perder a vontade de ser e de fazer. Não saber a importância das coisas. Saber que os outros não compreendem. Não compreender ninguém. Porque nada interessa. Porque tudo é inútil. Porque a inutilidade sabe a espanto. Porque o espanto engole a vida.

Daí a importância de saber o valor das coisas. Saber o que vale a pena. O aperto de mão. A honra. A verticalidade. O saber o valor do outro. Saber caminhar com ele. Porque há valores que quando aprendidos valem para a vida. Ensinamentos que guardamos numa arca de segredo. Coisas nossas que prometemos cumprir. Saber sempre o que vale a pena.

«Hoje, estás muito pensativo. Pareces triste.»

Fala de Isaurinda.

«As coisas estão feias. O mundo está convulso. Os pobres aumentam.»

Respondo.

«Nisso tens razão. Tudo isto nos faz mal. Tens de ter mais calma.»

De novo Isaurinda e vai, beijinhos voados na minha direcção.

Jorge C Ferreira Fevereiro/2023(386)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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8 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O valor das coisas”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    Tão belo o que acabei de ler e reler. Tanta sensibilidade, tanta ternura, tanta nobreza de sentir, tanta delicadeza quando fala de uma mulher. É verdade, há mulheres tão frágeis e no momento elas conseguem ser tão fortes. Ninguém as pára vão até ao fim, cumprem a sua missão.
    Este texto é sublime é um hino ao valor humano, de cada um de nós.
    O sofrimento, nega a muitos saber o valor dos afectos. Estou rendida ao que li, sensibilizou-me muito a beleza de alma, que inunda de poesia cada palavra sua, meu gentil poeta e amigo.
    Grata, abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sempre gratificantes os seus comentários. Sempre belos de ler. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  2. Eulália Coutinho Pereira

    Crónica excelente. Um ensaio sobre a vida. O valor que não se quantifica. Um gesto de afecto pode ser mais valioso que uma grande dádiva. O mundo está a, ficar feio. O amor está a dar lugar ao ódio. O bem querer está a dar lugar ao desamor. Valerá a pena? A pergunta que se impõe. Quero acreditar que o amor poderá vencer.
    Obrigada Amigo, pela excelência da sua escrita. . Grande privilégio o meu.
    Por muitos motivos, mesmo aqueles que nos limitam, a vida vale a pena.
    Um abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Sempre bom ler os seus comentários. Sempre precisos e certeiros. Obrigado pela sua constante presença. A minha imensa gratidão. Abraço

  3. Fernanda Luís

    Jorge, gostei da crónica.
    Saber o valor das coisas, da sua essência…
    Há princípios/valores que valem para a vida toda, devendo ser assumidos como um COMPROMISSO. Como um juramento. Essa, a minha forma de viver e estar na sociedade ou em comunidade. Sou uma pessoa de compromisso (embora não santa).
    Tenho na Declaração dos Direitos Humanos a principal bíblia.
    Até sempre.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Sim, é importância do valor das coisas. As coisas que vivem dentro de nós. Sempre bom lê-la. A minha gratidão. Abraço

  4. Lenea Bispo

    O que vale a pena é investir . Tal como não se trata aqui do valor das coisas, também não falo do investimento económico . Mas investir nas pessoas , confiar nelas e será agradável termos o justo reconhecimento e pagamento disso. Também não penso em dinheiro quando falo de pagamento … mas há o ditado que diz: Amor com Amor se paga.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea, perfeito o seu comentário. O que de mais importante vive em nós, é o que nos faz pessoas diferentes. Aprender e ensinar. A minha gratidão pela sua presença neste espaço. Abraço grande

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