Crónica de Jorge C Ferreira | O tempo a passar

Jorge C Ferreira

 

O tempo a passar
por Jorge C Ferreira

 

Desde cedo aprendíamos os caminhos. A rua era a nossa vida. As árvores enormes da placa central faziam-nos mais pequenos. As travessas, as calçadas, os becos e as escadinhas. Um jardim de todas as descobertas. Procurar sempre os novos caminhos. Os caminhos que nos levariam a vidas diferentes. Encontrar o estranho numa casa de luzes coloridas. Tudo era aventura, descoberta, caminho e descaminho.

Muitas horas de jogos e conversas. Sonhos que povoavam a nossa cabeça e que pareciam ainda muito longe de concretizar. Mal sabíamos que o tempo, de repente, se tornaria uma pressa impossível de parar. Desde a primária que íamos para a escola sozinhos. Trajectos que aprendíamos e fazíamos com algumas incursões por atalhos que íamos aprendendo. Desvios de uma vida que sabíamos controlada. Havia sempre alguém que sabia de nós. Não sei quantos olhos nos guardavam.

Uma casa de jogos onde se jogava ping-pong, négus e matraquilhos. Era bem na traseira da minha casa. Por ali passávamos a correr quando a prova em disputa era a volta ao quarteirão. Essa foi, durante algum tempo, a nossa prova de fundo. O cansaço, as camisolas suadas, o coração a sair pela boca.

Os carros eram raros. Passavam autocarros e eléctricos. Nada que importunasse a nossa rotina. As soleiras das portas eram locais onde nos sentávamos a conversar e a fazer projectos que desconhecíamos se seriam possíveis de concretizar. Era a nossa maneira de sonhar acordados. Sonhos colectivos onde havia sempre alguém que acrescentava uma novidade. Passos que se iam desenhando para uma vida futura.

O futuro era algo que nos parecia inatingível. Ir ver os filmes para os mais velhos uma coisa longínqua. Rasurar o bilhete de identidade era uma tentação. Mas, e se fôssemos descobertos? Ver os cartazes dos cinemas de primeira e os de reprise também. Imaginar tudo. Ter uma paixoneta por uma actriz, por uma cantora, ser de um clube de fans. Passar a fazer colecção de cromos e desistir dos bonecos da bola. Deixar de jogar à palmadinha.

Algumas coisas muito ingénuas e um despertar em nós para novas aventuras. Os sentidos a aguçarem as vontades. Descobrir a beleza do outro sexo. Apreciar as saias travadas e as meias de vidro com costura. Imaginar o que não se via. Procurar nos quiosques as revistas atrevidas. Já tínhamos experimentado o primeiro cigarro. Carvalhão, já cá não estás para contar daqueles cigarros Paris surripiados do maço do teu pai e fumados ao fim da tarde no pátio de entrada da escola primária. Tão meninos que éramos.

Esse tempo de aventuras iniciáticas. Procurar a miúda a quem dar o primeiro beijo. Procurar o céu na terra. As noites tinham estrelas e sonhos. Por vezes uma lua enorme que parecia nos querer visitar. O céu parecia muito perto do quinto andar onde morava. Um telhado e um estrado onde nos podíamos deitar e sonhar com outras viagens.

Entretanto a vida parecia acelerar sem sentido. Não tardaria muito estaríamos no mundo do trabalho. Alguns iriam para as faculdades e teriam mais um tempo diferente. Apesar das diferenças ainda hoje nos voltamos a encontrar. Temos já algumas baixas. Mas continuamos a ser um clube forte à procura de novas vitórias. Beber um café juntos, jantar, reviver um mundo perdido. As nossas novas aventuras.

«Hoje deu-te para as saudades do passado. Põe-te fino.»

Fala de Isaurinda.

«De vez em quando temos de ir lá atrás para saber quem somos.»

Respondo.

«Sim, sim, mas não abuses. Tens muito para fazer.»

De novo Isaurinda e vai, um sorriso trocista na mão esquerda.

Jorge C Ferreira Janeiro/2022(334)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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24 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O tempo a passar”

  1. Vitor José Pinheiro

    Tempos que já não voltam, tempos em se respeitava os mais velhos e se aprendia a ser alguém um dia,

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Vitor. O tempo de todos os sonhos. Abraço

  2. ANTONIO FELICIANANTÓ

    Bonita crónica, Jorge!
    Quanto do meu passado recordo, nostálgico!
    E que bem me sabia praticar os jogos tradicionais da moçada.
    Ficam as saudades, as vivências e tanta coisa que fica por dizer!
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Os nossos tempos. A nossa ingenuidade. Grande abraço.

  3. Maria Fernanda da Cunha Morais Aires Gonçalves

    O tempo passou e agora recordo como foi a minha adolescência nos anos em que crescemos tu em Lisboa eu numa vila de provincia bem perto, a 60 Km, mas que parecia ficar no polo norte..O que me salvou foi uma Bibliotica fixa da Gulbenkian. Tornei-me uma devoradora de livros. que tinhha sempre debaixo do Matoso de História, do livro de Física, do de Química, fazendo de conta que estudava, não lia. Hoje penso que foi bom, pois acabei por fazer as duas coisas. Nunca fui, porém, uma brilhante aluna, lá acabei o Liceu e vim então para a grande cidade trabalhar. Aos 19 anos já estava meio perdida e meia tonta no mundo do trabalho sempre vigiada até que aprendi a voar!
    O resto já tu sabes, só não nos encontramos numa pista de dança por acaso. Ou, quem sabe, se não andamos a dançar um Pop bem perto um do outro…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Sim as vidas tão perto e que nunca se encontraram. O Pop Club. E tantos outros lugares. Acabámos por nos encontrarmos e agora somos Amigos para a vida. Abraço imenso.

  4. Coutinho Eulália Pereira

    Excelente. À medida que o tempo passa, as memórias de infância tornam-se mais nítidas.
    É comovente acompanhar esta viagem no tempo. As brincadeiras, as pessoas que fizeram parte da nossa vida. Vivências tão diferentes, mas tão iguais nas brincadeiras e na inocência própria da idade.
    Que bom ter recordações de uma infância feliz.
    Obrigada por continuar a escrever desta forma única e pela partilha de emoções.
    Um abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Assim vou revisitando o que fui e o que fiz. Tudo sem medo de me expor. Assim se vive de de novo. Gratidão imensa pela sua presença. Abraço grande

  5. Filomena Geraldes

    Voltar ao ontem.
    Olhar para trás. Encontrar o que julgámos ter perdido. O tempo da descoberta e das aventuras.
    Das ousadias e das iniciações.
    A cidade e os seus convites.
    Os jogos do faz-de-conta. As cumplicidades e os arrojados atrevimentos.
    Quanto desassombro!

    Um céu tão perto. As estrelas
    à mão de semear. Os sonhos
    que moldámos. As estórias que efabulámos.
    As vontades que sentimos a pulsar
    no peito.
    Os desejos a tomarem forma.
    Ser inequivocamente feliz.
    Ou experimentar o amargo da revolta. Crescer!

    Como foi inaudito acompanhar-te nesta maravilhosa viagem. Obrigada.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Sempre tão bom ler-te. Os iniciáticos caminhos. As veredas e as avenidas. Os cigarros proibidos e os desejos por concretizar. Grato, grato. Abraço grande

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    Tão bonito. Lembrar a infância, a juventude, tão diferente da que hoje se vive. O tempo nunca mais passava, hoje foge.
    Saudades, é a vida. Sempre maravilhoso, adoro sei que era exactamente assim. Foram tempos bons, viveu-se intensamente a família que nunca esqueceremos.
    Tantos sonhos e tanta inocência, meu amigo.
    Agradeço muito estes momentos, sempre tão sinceros, recordar é maravilhoso.
    Obrigada, pela sua escrita ímpar, querido escritor.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Que bom estar aqui. Sim, a nossa ingenuidade. O princípio de quase todas as coisas. Esta imensa magia de termos memória. Assim gosto de me dar. Tão grato. Abraço enorme

  7. Isabel Soares

    O cronista, hoje,transporta-nos para a sua infância e adolescência. Orgulho,saudades e nostalgia são patentes. Também o proibido e a esperança e até o inimaginável futuro. Memórias de um tempo onde o sonho e os momentos felizes,vividos interpares,vividos em cumplicidade e por isso mais fortes e estruturantes.
    O autor desvela pedaços da sua juventude. Oscilando entre o quotidiano, desse tempo,e o desejo do futuro. Aqui,neste texto,imbuido de fantasias e anseio de um porviir que seria o passaporte para uma vivência diferente.
    Um texto de ingenuidade e autenticidade que percorre um tempo já longinquamente passado,mas visceralmente presente. Uma fase inesquecível que lhe formou a identidade. Recordar e regressar a esse tempo é para o autor confrontar-se com as suas raízes. Com as descobertas e o sentido de mudança. Reconhecer-se, rever-se e neste processo perceber-se no presente.
    Mais uma crónica muito bonita,que transpira sinceridade e nos revela fragmentos da sua vida.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Que bela é a sua presença neste espaço. Que certeiros são os seus comentários. A vida que exponho. A iniciática aventura de querer ser. A ingeniuidade e a tosse da primeira fumaça. Muito grato. Abraço grande

      1. Isabel Torres

        Eu é que agradeço, Jorge. ObrigDa,pelas suas palavras ao meu comentário. É uma honra poder criticar o que tão belo escreve.

        1. Ferreira Jorge C

          Obrigado Isabel. Sempre. Espero nunca a desiludir. Abraço grande

  8. Ivone Maria Pessoa Teles

    Comentei no FB.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. A tua presença aqui é tão importante para todos. És um exemplo. Um caminho a seguir. Tão grato. Beijinhos.

  9. Cristina Ferreira

    De uma ternura ímpar, esta crónica.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Assim me enches de contentamento com estas palavras que aqui me deixas. A ternura é uma necessidade absoluta para a vida. Grato, grato. Abraço enorme

  10. Regina Conde

    As brincadeiras saudáveis no tempo certo. As árvores enormes íam ficando mais pequenas conforme crescíamos. Essa vontade de ser mais velhos. Os rapazes usufruíam de brincadeiras diferentes das meninas. A liberdade de inventar. As voltas ao quarteirão, onde o proibido era apetecível. Concordo na importante em irmos tão atrás quanto possível. Melhor nos conhecemos e vale a pena. Abraço meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Sim, minha Amiga, temos de ir buscar tudo o que fomos e vivemos para nos encontrarmos agora. Todas as ingénuas aventuras. Todas as normas derrubadas, afinal a vida toda. Tão grato. Abraço forte

  11. José Luís Outono

    Do teu recordar, assumo idênticos passos ou teorias de quando era pequeno e queria ser grande … hoje, quantas vezes desejo voltar a ser pequeno e aventureiro nas descobertas de cada manhã, e sonhos ao deitar.
    Inédito ler-te e pensar que me leio. Incrível desenho de momentos, onde julgávamos o teor ímpar das nossas descobertas ou telas de um futuro que gritávamos soltos em segredos nas agendas inoportunas de esconderijos com o nosso código.
    Bem-hajas amigo por mais um sentir, que recordei emocionado.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Obrigado Poeta. Fomos o princípio de tudo. Ao princípoo voltaremos? As aventuras deslumbradas. A ternura que não queremos perder. Em tudo temos de nos reconhecer. Muito grato. Abraço forte

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