Crónica de Jorge C Ferreira | O Sonho e a Vida

O sonho e a vida
por Jorge C Ferreira

 

Nunca esquecer o nosso trajecto. O caminho que trilhámos. De onde viemos e onde chegámos. Estar sempre a aprender quem somos. Corpo e mente. A sóbria vontade de não existir. Sermos invisíveis ao mundo. Sentir o sabor das coisas e aprender os mais incríveis cheiros. Saber dos outros povos e tratá-los como irmãos. É de braço dado que temos mais força.

Nunca renegar nada do que fomos e de onde nascemos. Sermos inteiros e irmos deitando coisas fora. Uma maneira de ficar mais livre. Mais leves. Ganhar lugar para Ser. Tentar alcançar o intangível. Saber do colorido que, por vezes, a vida tem. Estar atento aos outros. Aos seus problemas e dores. Saber das suas alegrias e ficarmos felizes por isso. Aprender da vida o melhor, o mais saboroso.

Ter uma escada. Os degraus encerados e gastos. A marca dos passos de muitas gerações. Uma escada que pode ser a vida. Um escadote de duas escadas. Um sobe e desce. Uma alegoria. Uma fantasia. O começar a descer. A escada a gastar-se. A vida cada vez mais cansada. Diz o povo que é sempre mais difícil de descer uma escada que a subir. As dores a acrescentarem mal-estar. Nada a fazer, é um ciclo que se irá cumprir.

Não acredito no destino. Por vezes antecipo situações, o que me deixa preocupado. Não devemos antecipar nada na vida. O que chegar, e quando chegar, logo será tratado. Não nos deixarmos vencer pelo que até pode não acontecer. As nossas forças não são para gastar em vão. Por certo iremos necessitar delas para resistir a determinados contratempos. A vida é bela, dizem uns. A vida é tramada, dizem outros.

De uma coisa nos devemos lembrar, fomos nós que traçámos o nosso caminho. O que aparece pelo meio é uma espécie de jogo, onde mesmo os que não jogam são chamados à liça. Coisas um pouco inexplicáveis. Ninguém é dono de ninguém, nem de nada. É tudo uma ilusão.

Quando era novo pensava sempre a vida como um sonho. Por vezes tinha medo de acordar e ver as coisas a complicarem-se. Estou quase a voltar à mesma fase. Não sei se estou a completar o ciclo. Não sei se irei viver outra vez como quando era miúdo. E se isto for mesmo um sonho? Se a realidade nos estiver vedada? Quando iremos saber?  Não sabemos de nada. Sabemos sempre tão pouco. Continuamos tão ignorantes em relação a certas coisas.

As famílias são cada vez mais pequenas. Já não há casas de famílias grandes, de várias gerações. Os Avós estão longe dos netos. Por vezes pergunto-me: quem seria eu sem a minha Avó sábia? A avó que morreu de mão dada comigo. A maneira que arranjei de ela ficar para sempre comigo.

Vamos ganhar coragem para viver o mais difícil. Talvez um dia acordemos deste sonho e vejamos um mundo diferente. Ou talvez não, e isto seja mesmo assim. Que confusão vai nesta cabeça. Avó, diz-me qualquer coisa.

  • Coragem! –

«Ouve lá, que coisa estranha escreveste. Estás bem?»

Fala de Isaurinda.

«Quem sabe se está bem, neste tempo? Não tenho queixas.»

Respondo.

«Contigo nunca fiando. Por vezes és muito estranho. Se a tua Avó cá estivesse dizia-te.»

De novo Isaurinda e vai, alguma desconfiança na mão fechada.

Jorge C Ferreira Outubro/2020(269)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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17 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O Sonho e a Vida”

  1. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Sentir a vida no outono dela própria.
    Todos os anos as quatro estações alegram-nos e dão-nos a informação biológica no nosso metabolismo. A vida tem as suas reações e sentimo-las em manifestações moderadas consoante a idade vai passando. São os sinais com que a natureza nos vai demarcando, de etapa em etapa até ao adormecimento que desejamos sempre com saúde, muita tranquilidade e paz de espírito.
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Assim iremos percorrer o tempo. Nesta nova esquina que temos de dobrar. Tempos que marcam. Grande abraço.

  2. Cecília Vicente

    Descomplicar a vida se ela nos permitir… Tempos nossos e de outros que são nossos, laços de sangue que perduram, o cordão umbilical uma constante página que não deixa de estar presente, uma constante preocupação, protegem-nos, dizem para nosso bem só que demasiado tempo de espera, o abraço por dar, o beijo que deixa de ter aroma de criança, aquele cheiro tão peculiar que só a mãe sente. Que cheiro ganhamos nós com o passar dos anos? Deixaremos para outros recordações e memórias para lembrarem, contarem e, talvez escreverem?…
    Que tempos meu amigo, as ruas parecem-me diferentes, ouço o comboio e temo entrar para seguir viagem; Lisboa terá o mesmo encanto? Apesar dos pesares fazem falta os turistas, a Lisboa sem atropelos, sem Pessoa, Natália Correia, Ary dos Santos, que diriam, que confinamento aceitariam fazer já que lhes pulsava a liberdade? Que medo aceitariam ou não acreditar? Que vida esta, que outra forma de viver iremos aceitar ainda que contrariados? Que texto, que crónica a tua que me deixou pensativa… não faço eu outra coisa senão pensar em todos, os meus, e, todos os outros. Abraço meu amigo. Vamos esperar, será que haverá alguma carruagem de sonhos? Se souberes dizes-me ?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Esta nossa mania de pensar e de nos interrogarmos. Este tempo que pede tempo. Até quando iremos resistir? Até qua a Liberdade nos doa? Cuida-te minha amiga. Abraço.

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Texto magnífico. Como em tantos outros, vejo neste, o meu percurso de vida. Também eu, não acredito no destino. A nossa vida é o resultado das nossas opções. Procuro viver e valorizar o momento presente. Ontem é passado, que fez de nós o que somos hoje. Amanhã é futuro, que desconhecemos
    Nesta fase da vida e na situação que vivemos, tudo é uma incógnita.
    Vamos descendo a escada, mesmo com dificuldade.
    Estranho tempo este, meu amigo.
    Também digo o que diria a sua avó. Coragem.
    Obrigada por estar desse lado. Um grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Que caminhada esta! Temos de ter coragem e seguir. Mesmo que as solas se gastem caminharemos descalço. Grande abraço.

  4. Ana Bela Duarte Lopes Graça

    Tanta beleza e sabedoria condensadas neste crónica, meu caro Amigo. O que eu gostei! Assim como alguém já disse, também a minha identificação é tão grande! O sonho e a realidade. O carinho e a sabedoria dos nossos. Sermos inteiros e deitar o que não interessa, fora. O escadote de duas escadas. O sobe e desce. O começar a descer, todavia tão belo! Tenhamos coragem para esta descida final. Afinal, fomos nós que traçámos o nosso destino… um terno abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana Bela. A importância do Sermos, nunca o Termos. A caminhada final. Tudo sem pressa. Sermos despojados. Amar a vida. Abraço igual.

  5. Mena

    Essa escada, meu amigo. É uma escada que não nos custou a subir. Fizemo-lo com alguma leveza, sem nos perdermos em pensamentos amargos.
    Tudo parecia quase fácil. Tão simples. Sem peso para os ombros, sem queixas, sem pesares…
    Agora tudo mudou. Até nós. A escada é íngreme.
    E o corpo já perdeu a destreza, a flexibilidade e aquele intenso desejo de aventura. Resignou-se.
    Mas o pensamento, esse, meu poeta, meu escritor das horas todas, ainda é nosso! Ainda tem uma identidade, uma essência. Uma consciência.
    E tu que falas de anseios, lamentos, inseguranças, sonhos, devaneios, estados de alerta e memórias, tu, ficas guardado nos nossos corações. Sempre.
    Tu.
    Que não acreditas em destinos mas nâo sabes se, um dia, não voltarás a ser criança…
    Creio que tudo o que é futuro nos é vedado.
    Futuro? Existe ou é pura ilusão?
    Viver o agora. Só isso importa. Deixar fluir os dias, dar lugar à festa que por enquanto é vida. Depois, logo se vê…
    Não há como descobrir. Antever. Antecipar. E até prorrogar.
    O que tiver de vir, virá. Ou não, quem sabe?
    O medo? Que medo? Se não existem papões. Nem deveriam existir quartos escuros…
    Tudo é interrogação.
    Mas nada pode ser conflito. Ainda há um horizonte que avistamos. Daqui. Vamos, poeta?
    Vamos descendo as escadas? Com ou sem ajuda? Com ou sem muletas? Com ou sem um ombro abrigo? Vamos?
    Eu sei que és capaz.
    Dá-me a tua mão. Anda! 💗

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Tão belo o teu comentário. Descer a escada, a dificuldade. Tudo sem rede. O desafio constante. A busca. A ternura. Abraço Grande.

  6. ivone Teles

    Meu querido Amigo/ Irmão
    Que belo o teu texto. Belo e com tanta verdade para vivermos uns com os outros, nós para os os outros, estes para connosco. É sempre uma emoção ler-te. De braço dado contigo, seremos pessoas que sabem dar-se, sem interesses escondidos, aos que nos cercam.” Aprender da vida o melhor, o mais saboroso”, dizes. Para ti, são os outros que estão à frente, sempre. És um poço de generosidade. A tua avó fez de ti um menino feliz e com ela também aprendeste a espalhar ” felicidade “.. E enfrentas as escadas do escadote da vida: a subir dum lado, a descer pelo outro.. E questionas tudo aquilo que faz a vida de cada um, sempre pronto a ajudar. Porque ” não sabemos nada; sabemos sempre tão pouco”. Todas as tuas palavras fazem, em conjunto, um auxílio para quem as quiser aproveitar. A tua sábia Avó andará contigo, sem medo destas estranhezas que se atravessam, agora, nos nossos caminhos. Porque continuas de mão dada com ela e ainda és o seu menino. Faz-me bem ler-te, ouvir-te, ainda ” menino nosso “. Mando um beijo à Isaurinda e beijinhos para ti, meu Irmão, meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Tão bonito e geneeroso o que escreveste. Tu que mais que uma mulher és uma dádiva. A pedsoa que dedicou toda a vida aos outros. Eu sei que a minha Avó estará sempre comigo. Beijos.

  7. Tomás Cardoso

    Muito bem
    Devemos ser da mesma geração, que sem teias solta a sua criança livre.
    Não sou assíduo nas redes, mas identifico-me com os seus escritos
    Nesta passagem terrena deixar este registo é digno de aplauso.
    Abraço do tamanho da nossa Montanha do Pico

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Tomás. Tão bom ouvir falar desse Pico tão belo. A descida da montanha. Grato pela sua presença neste espaço. Abraço enorme

  8. Cristina Ferreira

    Querido Jorge,
    estas palavras são de um mestre que nunca deixou de ser menino.
    São palavras sábias de quem viveu muito e intensamente, sem nunca deixar de sonhar. Sem nunca deixar de acreditar. Na tua inteireza, soubeste ser livre. A tua avó sábia, responde-te sempre, querido Jorge. Nos teus sonhos.
    Grata por este momento.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sempre generosa, sempre amiga. Espero ser assim até ao fim. Abraço Grande

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Amiga sempre generosa e interveniente. Espero ser assim até ao fim. Espero nunca te desapontar. Abraço Grande

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