Crónica de Jorge C Ferreira | O caixeiro malabarista

Jorge C Ferreira

 

O caixeiro malabarista
por Jorge C Ferreira

 

Era um dos nossos. Um dos que participava nas conversas sem fim. Um dos que fez parte das nossas aventuras caladas. Sim, era um dos nossos.

Morava no último andar de um prédio numas escadinhas perto da Estefânia.  Escadinhas que também serviram para muitas descidas arrojadas em tábuas ensaboadas. Nos patamares largos jogava-se à bola. Consta que foi aí que Vítor Damas fez as suas primeiras grandes defesas.

Num desses patamares morava outro Amigo nosso. O Pai tinha aí uma fábrica de confecções. Aí foram feitas as camisolas de uma equipa de futebol de salão de que fiz parte. Camisolas muito coloridas. Os calções verde-alface feitos pelas nossas Mães. O mais surpreendente foi o nome criado para a equipa: os Ykamokaxakas. A nossa entrada em campo num torneio na Costa da Caparica foi saudado com um misto de espanto e risadas. Aquelas eram umas escadinhas surpreendentes e criativas.

Algumas vezes calhava o serão ser feito na casa desse amigo. A saída, já tardia, era infernal. Ele a pedir para não fazermos barulho por causa dos vizinhos. Nós a tentarmos fazer o contrário. Um jogo que nunca acabou.

Esse amigo começou a trabalhar muito cedo. Fez-se um empregado de balcão, caixeiro, numa casa de fazendas e outros artigos para confecção. Era um prazer vê-lo abrir e desdobrar as peças de tecido, mostrar o produto às clientes. Mostrava o correr do tecido, o direito e o avesso, elogiava tudo de forma única. Quando se tratava de tecidos mais vaporosos e de outra delicadeza puxava os rolos, deixava os tecidos caírem suavemente e demonstrava as qualidades dos mesmos de uma forma única.

A forma como manuseava o metro de madeira e cortava e rasgava os tecidos já tinha laivos de malabarismo. Era um espectáculo digno de ser apreciado. Muitas vezes íamos assistir a tudo isto e atrapalhar um pouco o serviço. Coisas de putos que iam ver um dos seus a trabalhar. À noite, tudo era conversado e as gargalhadas apareciam soltas e espontâneas.

Um dia chegou a tropa e lá se foi a loja, o metro, a tesoura e tudo o resto. Deram-lhe uma farda, umas botas e uma G3. Fizeram-no radiotelegrafista. Tudo parecia bem encaminhado até que surgiu a mobilização para defender o impossível. Lá foi até ao outro lado do Mundo. Uma terra sem problemas aparentes. O perigo de apanhar doenças e os vícios que a tropa pode proporcionar.

Já não me lembro se o tempo de comissão tinha acabado e estava à espera de transporte ou não. Sei que foi no ano de  1973. Foi como radiotelegrafista a bordo de um navio de cabotagem da marinha mercante que iria percorrer o extremo Oriente.

Aconteceu o inesperado. O desaparecimento do navio e todos os que iam nele, excepto um que contou como se salvou e o modo como ocorreu o acidente. A PIDE calou o caso e é tudo o que se sabe até hoje.

O nosso amigo tinha casado no ano anterior por correspondência. Quando fomos, uns três ou quatro de nós, a casa dos pais que moravam, nessa altura, numa vila perto da Estefânia encontrámos a incredulidade e um quadro de negritude. A viúva, que nunca chegou a ver o marido depois de casada, lá estava, também vestida de negro da cabeça aos pés. Falaram-nos de recados que lhes chegavam, que tinham visto fulano e sicrano, supostamente vítimas do naufrágio, em lugares incertos. Mensagens estranhas que lhes apareciam. Sentia-se um não querer acreditar, um esperar que um dia ele batesse à porta como que vindo do nada. Saímos daquela casa de rastos. A nossa impotência doía-nos. Assim tinha ido um dos nossos. Também nós não queríamos acreditar.

Fica sabendo, meu amigo, que quando nos encontramos és, muitas vezes, objecto de conversa e que te recordamos.

«Esta história é triste. Que coisa horrível.»

Fala de Isaurinda.

«Sim, tens razão. Ficam os momentos bons. É assim que temos de viver.»

Respondo.

«Isso és tu a falar. Eu sei que, no fundo, sofres estas coisas.»

De novo Isaurinda e vai, uma lágrima na mão direita.

Jorge C Ferreira Abril/2022(346)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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13 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O caixeiro malabarista”

  1. Maria Matos

    A história do caixeiro malabarista… que tão bem manuseava os seus tecidos…
    Que triste a guerra que tantos jovens, como este levou…
    Que fim tão triste, como tantos, cujas histórias ouvimos e muitas que presenciamos e conhecemos…

  2. Isabel Campos

    Ohhhh …

    Dava para ficcional. Triste, sim. Já me perdi nas pesquisas…
    Há sempre uma espécie de fio condutor que nos une através dos tempos e quem sabe se depois deles.

    Bom fim de semana 😘 beijinho

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. São novelos de linha que nos ligam. Vidas que vimos depois da vida. Sabes que estamos ligados. Abraço

  3. Ivone Maria Pessoa Teles

    Vim até Mafra ao teu encontro, mas nem sei se posso comentar, meu querido amigo. A tua forma como contas, seja o que for, é sempre muito bela e ( mais uma vez o digo ) de escrita cinematográfica. Leio ….e vejo o filme. Muito interessante a crónica. Beijinhos ternos meu querido Amigo/ Irmão.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Sabes, as coisas estão projectadas no meu viver. São momentos marcantes. Depois aquele tempo horrível que tentávamos tornear. Abraço imenso

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    O caixeiro malabarista, que tão bem manuseava as peças de tecidos, delicados.
    E que tão feliz se sentia no grupo de jovens amigos. Foi chamado para a guerra.
    Uma guerra sem fim. Conduzida por gente incapaz de sentir o sofrimento do outros. E assim desapareceu, este jovem. Causando dor aos seus amigos e a sua amada família. Dor para sempre.
    Esta é uma história muito triste, trazida até nós num dia marcante. O dia da Liberdade ! Que pôs fim a este massacre.
    25 de ABRIL SEMPRE , querido escritor. Obrigada.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. O tremendo Serviço Militar Obrigatório. A nefasta guerra e a mania do império. Coisas de gente doentia. Sim, minha querida Amiga, 25 de Abril Sempre! Beijinho

  5. Filomena Geraldes

    O caixeiro malabarista tinha um saber de mãos ímpar. Era o amigo que fazia do corte dos tecidos uma arte, do tombar dos mais finos e diáfanos um talento, da mostra e
    do caracterizar dos mesmos um quase poema.
    O seu trágico desaparecimento, no navio onde era radiotelegrafista, a visita à viúva que nunca chegou a amar, uma família destroçada que recebia estranhas notícias sobre supostas vítimas do naufrágio, avistadas, aqui e ali, adensaram o mistério sobre um incidente que nunca chegou a ser esclarecido.
    Este foi um amigo que deixou uma profunda e dolorosa marca.
    Desde o convívio espontâneo que cedo se estabeleceu entre o grupo
    de amigos até à admiração pelo modo como manuseava os tecidos,
    e mais tarde, a mágoa com que foi recebida a triste notícia, não duvido que o caixeiro malabarista tenha sido o escolhido pelo nosso expressivo cronista para mais um relato vivido na primeira pessoa.
    Desta vez, um relato que pugna por deixar um nó na garganta e uma teimosa lágrima escorrendo pela face…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Escreves com os sentimentos todos na ponta dos dedos. Foi o que começou a trabalhar mais cedo de todos nós. Foi o que partiu primeiro. Tão antes do tempo! Amarguras que ficam. Abraço grande

  6. José Luís Outono

    Momentos de momentos vividos, onde o amanhã é uma constante incerteza, de reflexões válidas.
    Momentos que marcam o nosso diário, que nunca conseguimos apagar, mesmo que algo o tente fazer … como os silêncios de uma dita polícia torturante.
    Momentos de momentos, aqui trazidos numa saudade ímpar … dos teus encontros de ontem!
    Grande abraço!!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Momentos que nos marcam. Através deles norteamos a vida. A odiosa PIDE. Facínoras da António Maria Cardoso. Os bufos a polirem as esquinas e a escutarem nos cafés. Um país vigiado e uma juventude sacrificada numa guerra sem sentido. Que tempos! Abraço grande

  7. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente, real e triste. Vidas decepadas que fazem parte da nossa história. Tragédias nunca explicadas.
    Situações que não podem cair no esquecimento.
    A nossa adolescência e juventude foi marcada por uma guerra, que não podemos aceitar.
    Fica a memória dos que vimos desaparecer e são recordados com saudade.
    Cada vez faz mais sentido, gritar bem alto 25 de Abril SEMPRE.
    Obrigada por estar desse lado.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Que tempo terrível. Quantas viúvas virgens? Quanta juventude com a vida decepada. A tristeza de viver num país a preto e branco. Tanto tempo a lutar por aquela madrugada. Abraço enorme.

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