Crónica de Jorge C Ferreira | Livros e Ruas

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Crónica de Jorge C Ferreira | Livros e Ruas

 

Livros e Ruas

O coração aos saltos. Um livro a ferver. Gente que chama gente. Um medo sem medo. A vida a continuar. Tanta coisa a tratar. Tanta coisa a contar. Tanta coisa por contar.

As páginas a encolherem. As letras cada vez mais pequenas. As ideias, as ideias a saltarem e a sumirem-se num jogo de enganar. Quantos espaços. Os espaços dos silêncios que muitos não entendem. O fim que se faz difícil. O desejo que se quer desejado.

Desejado chamaram ao rei que não entra nesta história. O nevoeiro que sabe a azul. Os promontórios e as vidas a pensarem se querem viver. Um barco na barra. Os marinheiros na amurada. Terra à vista. O que eu via com os binóculos daquele nono andar em Cascais! Um nono andar com varanda para o suicídio. Um terraço de sonhar.

A vida que vamos mudando. A vida de viver, de beijar, de sonhar. Cada casa é uma vida. Cada vida uma história. Cada história uma cantiga. Cada cantiga um poeta e um músico. Cada poeta um sonhador. Cada músico uma harmonia. Cada cantor um deus. Cada deus um altar. Cada altar uma oração.

As coisas que carregamos de casa para casa. Anos e anos de sonhos escondidos. Papéis, livros, quadros, móveis que fazem parte de nós. Tanta tralha sem uso. Um dia sonhei poder mudar de vida com um saco na mão. Um saco onde levaria tudo o que era importante. Um saco com espaço livre para o que aparecesse de novo. Uma tarefa de difícil execução. Quase um sonho.

Cada rua tem recantos novos. Casas diferentes. Vizinhos que não se conhecem. Um café com o jornal dos crimes e o do futebol. A falta de estacionamento. Um barbeiro e um cabeleireiro. O transporte público. A tudo temos de nos habituar. Por vezes vamos para a outra rua onde o café é melhor e se pode ler o jornal à vontade.

O livro que nunca mais vai para a gráfica. A capa pronta. Está bonita! Espero que os outros gostem. As letras cansadas da espera. As frases a manterem uma unidade fiel. Tudo parece tão pronto, mas vai sempre faltar qualquer coisa. Como é que isto nos passou? A pergunta que vai restar sempre.

A apresentação. As mãos a tremerem. Os textos escritos e as palavras esquecidas. As perguntas que não surgem. A voz que não quer sair. Uma imensa saudade da pureza do mar. O barco em movimento. Uma alegria amedrontada. Entregar o livro aos outros.

Não sei onde vou morrer. Não conheço a cama nem o quarto. Dizem-me para não pensar nisso. Já me mudei para um rés-do-chão. Estou a precaver-me com as dificuldades vindouras. Estou perto do meu café. Tenho saudades de quase todas as casas onde vivi. Tenho muitas saudades da casa onde nasci e que já foi derrubada. Não resistiu ao camartelo. Nunca mais fui àquela rua.

Espero que o livro saia e seja feliz. Espero que quem o leia se sinta feliz. Espero sempre tudo.

«Lá continuas tu a misturar coisas. Parece que queres baralhar as pessoas.»

Voz de Isaurinda.

«Não sou eu. São as coisas que se misturam. Já te disse que tudo tem a ver com tudo.»

Respondo.

«Lá estás tu! Não há nada a fazer.»

De novo Isaurinda e vai, a mão a acenar um adeus.

Jorge C Ferreira Outubro/2019(222)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

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15 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Livros e Ruas”

  1. Branca Maria Ruas

    Tudo encadeado…O que fica, o que vai, o que ainda está para vir.
    Que bom esse teu livro!
    Desejosa de o ter nas mãos, de o ver, de o folhear, de o cheirar… Adoro o cheiro dos livros.
    Vai ser um livro feliz! Estou certa disso, meu Amigo. E só de o saber já me fizeste também feliz.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Que bom o teu gosto por livros e leituras. Que gostes. Abraço

  2. Cristina Ferreira

    É verdade, querido Jorge, “tudo tem a ver com tudo”. Livros e Ruas.
    Ao lermos bons livros , somos convidados a uma viagem junto com o autor. Bons autores levam-nos a viver parte daquilo que eles mesmo viveram.
    As ruas por onde andamos, fazem parte da nossa história, individual e colectiva.
    A leitura desta crónica oferece-nos muitas sensações. Tanto que nos contas. Quantos de nós se identificam com tanto que aqui escreves E depois as emoções , a alegria de assistirmos a todo este ritual de espera do teu livro . O livro que vai sair e ser feliz. Feliz deixaste-nos já com esta grande noticia.
    A vida a continuar.
    Nós estamos contigo.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. As ruas são a fonte da escrita. O tipo de letra varia com os bairros. Os livros são alimento.

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Sublime! Eu daria a mesma resposta à Isaurinda ” Não sou eu, são as coisas que se misturam”….
    Memórias. O antes. O agora. A incerteza.
    Obrigada amigo por tão belo texto.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado. Eulália. Sim somos a mistura de tudo o que vivemos. Abraço

  4. Fernanda Luís

    Deliciosa a sua crónica, a sua forma de dizer. O encadeamento é tão melodioso. Inteligente “mistura”, porque “isto anda tudo ligado” (li isto algures, ahah).
    Maldita “burrocracia”.
    Desejo um breve e feliz parto!
    Expectante, assim me sinto…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Espero que a melodia lhe tenha agradado. Que a brevidade seja intensa. Abraço

  5. Madalena

    Tanto nos conta nesta crónica, meu amigo! É muita vida! Gostei muito e agradeço a sua constância em escrever para nós. Vem aí o livro? Que grande notícia! Temos que celebrar! Um grande abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Grato estou eu pela constância da sua leitura e comentários. Abraço

      1. Madalena

        Humm mas que honra, meu querido amigo! Um grande abraço e um beijinho

  6. Teles Ivone Teles

    “Não sou eu, são as coisas que se misturam, Já te disse que tudo tem a ver com tudo”. Uma resposta tua à Isaurinda, uma frase tão realista. Gostei muito da tua crónica, que é tua, mas tem tanto de cada um dos teus amigos. Talvez mais de os homens do que de mulheres. Mas só porque a educação nos formatou para sermos menos inquietas, a ser mais resilientes. O que escreveste é a vida de tantos de nós. Também me lembro muito das casas que habitei. Será, meu querido amigo, que são as casas que nos habitam? Deixam em nós marcas que permanecem. Numa, ou numas, pensaste o teu Livro. Na que, agora, te habita estão os teus pensamentos e ansiedades acerca dele. Tal como uma mulher que, durante 9 meses, contados agora em semanas, aguardam o filho que vai nascer. É natural uma certa espera. Breve o teremos cá fora e por ele torceremos. Meu querido Jorge, meu amigo irmão, já amo esse ” sobrinho ” Contigo o espero. Beijinhos ternos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado minha amiga/Irmã. Sempre tão belos e tão inteligentes os teus comentários. Mais uma vez os meus abraçados agradecimentos

  7. Cecília Vicente

    Tantas voltas,tudo a correr rapidamente. A vida a escrever-se numa página em branco,o oásis das palavras a quererem moldar-se no livro.Breve,breve, estará entre mãos e afectos ao primeiro olhar,à primeira leitura,ao virar da folha,um livro,outro se seguirá,tal qual como a vida,aprende-se a soltar as palavras
    Abraço meu Amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Tão belo o que escreveste. Breve, breve seremos nós. Abraço

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