Crónica de Jorge C Ferreira | Deolinda e o Lobo Azul

Deolinda e o Lobo Azul
por Jorge C Ferreira

 

Lembram-se do lobo inundado de azul que nasceu na última crónica?

Para quem não leu vou relembrar:

“Consta que no cimo da montanha nasceu um lobo inundado de azul. Terá nascido com novas aptidões? Que nasceu numa noite especial ninguém duvida. Que isso o acompanhará durante a vida também não. Como será o seu primeiro uivo à lua que impulsionou o seu nascimento? Que sentirá naquela sua iniciação? Espero que seja um uivo de agradecimento e de um azul muito puro.”

Este lobo ainda pequeno decidiu uma noite descer ao povoado. Vagueou tanto que se sentiu perdido. Procurou guarida, mas tudo se mostrou difícil. Foi então que viu uma casa térrea que chamava a atenção por ser a única com a luz acesa e pelo tom vermelho da mesma. Entrou no pequeno terreno e tentou arranjar um sítio para descansar. Ouviu os uivos do seu pai e decidiu ignorar.

Naquela casa morava Deolinda. Uma mulher de meia-idade e que era apontada na aldeia como uma “mulher fácil”. De sua casa eram vistos muitos homens a entrar e a sair. Constava que era assim que ganhava a vida. Muitas vezes era maltratada por alguns homens. Havia quem fosse testemunha das marcas no seu corpo.

Pela manhã, quando Deolinda saiu para o quintal, encontrou o pequeno lobo que se assustou. Deolinda, a pouco e pouco, foi eliminando os receios do animal. Ao fim de algum tempo já conviviam. A partir dali selaram uma amizade que parecia difícil de conseguir. O azulado animal passou a viver dentro da casa de Deolinda. De forma surpreendente a luz da casa passou a ser azulada. Apesar do aspecto diferente, as mulheres quando passavam pela casa benziam-se na mesma. Falava-se que o diabo tinha muitos modos de se inventar.

Uma coisa mudou. Desde a entrada do pequeno lobo na casa de Deolinda, ela nunca mais foi vista com marcas de maltratos. A amizade foi-se consolidando. Tornaram-se inseparáveis. Adoptaram-se um ao outro. A felicidade tornou-se visível, agora na casa da luz azul.

Deolinda deu um nome ao lobo: Azulinho. Assim o chamava e assim ele vinha. Tornou-se um defensor indomável da sua dona.

Azulinho foi ficando Azulão. Deolinda foi envelhecendo e os homens que frequentavam a casa azul começaram a diminuir. A amizade era indissolúvel. Azulão estava pronto para tratar Deolinda, que começara a estar muito doente, até ao fim. Era agradecido ao que ela lhe tinha feito.

Uma noite daquelas em que Lua está tão perto, tão perto que apetece tentar tocá-la, os uivos dos lobos ouviram-se no povoado. Era meia-noite e parecia dia. Dos olhos de Azulão saltaram duas grossas lágrimas. Deolinda estava sempre atenta e reparou. Também ela chorou e uma vontade imensa de conhecer a família de Azulão começou a crescer-lhe na alma. Olharam-se os dois, olhos nos olhos, e voltaram a chorar.

De manhã conversaram e decidiram que Azulão levaria Deolinda a conhecer a alcateia e os terrenos sagrados dos lobos. Partiram na noite seguinte. Subiram à montanha. A família do Azulão recebeu-os. Deolinda foi aceite como membro da alcateia. Ficou protegida e foi acarinhada até ao fim precoce da sua vida. Quando morreu, Azulão ficou sem terra. Foi então que o seu uivo foi mais forte e mais colorido. Esperava-se o nascimento de outro lobo. Que seja também inundado de azul.

«Olha a história é bonita, mas é muito estranha. Também tu andas estranho.»

Fala de Isaurinda.

«É um conto de uma amizade contada de outra forma.»

Respondo.

«Sim, sim. Tens sempre resposta para tudo.»

De novo Isaurinda e vai, um sorriso na mão.

Jorge C Ferreira Setembro/2021(313)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Deolinda e o Lobo Azul”

  1. Cecília Vicente

    Estória ou conto tanto faz, só o prazer e o encanto do que uma real amizade pode acrescentar à vida de cada um sem perguntas nem conotações deveria ser uma realidade, e, infelizmente não acontece. Tudo actualmente é irreal, há demasiado ego, demasiados apontar de “dedo”, classificar o que cada um é ou pertence como classe veio a lume com esta onda de vírus, o que me deprime e entristece mais do que devia, descubro em mim uma versão contemplativa que acrescenta à minha ingenuidade um fracasso emocional. Obrigada meu amigo, neste quadrado onde comento envio um duplo abraço, um pelo conto, outro pela amizade apesar da minha insistente ausência, porém, afirmo que da minha parte mantenho a recordação do primeiro encontro na Fnac no Chiado…Amigos para sempre em qualquer face da lua que até pode ser azul…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Tão sentido e intenso o que escreveu e ao mesmo tempo belo. A Amizade sincera será sempre azul. Também retenho esse ocasional encontro na FNAC. Abraço grande

  2. Manuela Moniz

    Um conto delicioso que me encantou, Jorge. Um conto muito ao teu jeito, tão cheio de ternura e de verdade. A amizade é assim. Que haja, sempre, um amigo, (mesmo que julguem improvável), que pinte os nossos dias de azul e de verde de esperança.
    Abraço imenso, meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Será o expressar da Amizade. A Amizade que nos faz viver. Os improváveis Amigos. As cores da nossa vida. Abraço grande

  3. Regina Conde

    Um conto irresistível. O lobo azulinho, mais tarde azulão. Deolinda, passou a ter a casa iluminada de azul tranquilo. A amizade, a forma mais doce de amar é infinita. Creio que é um conto de encantar e uma forma de transmitir às crianças que sermos diferentes não impede de nos ajudarmos uns aos outros. Trocamos vivências. Assim crescemos, partilhando a vida. Adoro este azulão, que julgavam o diabo disfarçado. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Grato pela leitura e pelo teu comentário. Continuamos a crescer. Abraço

  4. Filomena Maria de Assis Esperança Costa Geraldes

    São estas desusadas amizades que têm tudo para nos fazer acreditar que é na diferença que tudo pode acontecer…
    Existem estranhas afinidades, apegos indissolúveis ou seres que a natureza une e nada têm em comum. Apenas algo fez florescer a necessidade de companhia, irmandade ou apenas reservou surpresas benéficas para quem a vida foi madrasta.
    Amo lobos azuis.
    Alcateias.
    Mulheres com olhos de luar.
    Casas onde as candeias são azuladas.
    Histórias de amores inverosímeis.
    Creio em amizades improváveis.
    Em partidas tranquilas sob o olhar atento da ternura e do afeco.
    E, sobretudo, creio nessa história ou não tivesse eu encontrado, no outro dia, um lobo de pelagem azulada que me falou de ti com os olhos marejados de grossas lágrimas…
    Saudades de Deolinda…
    E ainda dizem que os lobos não choram… 💙

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Vamos seguir o caminhos dos lobos. Vamos crescer e ficar de um azul enigmático. Que bon teres conentado. Abraço

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Uma Crónica de encanto.
    Conta-nos a história de um lobo. Não, não é de um lobo mau.
    É de um lobo bom! Um Lobo Azul, que gosta da amizade e do amor. E sabe chorar !
    Que protegeu uma mulher e a libertou, da maldade e do maltrato, de homens maus.
    Que linda história de encantar nos conta, querido escritor. Como o afecto e o amor, podem transformar a vida de tantos. Só precisa, ser bom.
    Nesta história, mostra bem a alma de quem a escreveu. Obrigada por tanto, meu amigo.
    Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Nunca acreditei no lobo mau. Sou do caminho dos lobos. Do azul imenso. Dos afectis e do amor. Que bom o seu comentário. Abraço

  6. Isabel Soares

    Uma crónica de sonho. Uma crónica que é o sonho de uma amizade improvável. A substância que percorre esta narrativa é de uma beleza ancestral:o amor. No fundo,a única certeza a que podemos aspirar:afecto incondicional . E tudo passa a fazer sentido,mesmo na sua ausência.
    Uma crónica de fantasia que nos remete para os nossos sonhos mais profundos,os nossos anseios inconfessáveis, os nossos desejos escondidos.
    No “acaso” da vida,quando nos cruzarmos com um “lobo azul”, “convém”reconhecê-lo. Talvez o arco íris seja uma presença constante. Embora não abundem. Por isso toda a atenção é pouca e as nossas “características “também têm de ser especiais:inundadas de bondade,sensibilidade,fraternidade e inteligência.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. As cores somis nós que as pintamos. O caminho dos lobos é o nosso caminho. Sermos afectuosos uma das coisas mais importantes da vida aprender a bondade. Grande Abraço

  7. Ivone Maria Pessoa Teles

    Querido Jorge, linda a tua história de amizade/ amor entre um Lobo Azul e uma Mulher que por ele foi protegida. E se nos ajudarmos uns aos outros neste mundo, tantas vezes quantas forem necessárias, o AZUL espalhar-se-á e deixarão de existir PESSOAS que, para poderem viver e, quantas vezes dar de comer a quem delas dependerem, entregam a sua dignidade a quem as humilha e as maltrata. Nesta história não há Lobos Maus, mas sim uma família de lobos bons e solidários. Beijinhos querido Amigo/ Irmão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Uma alegoria sobre a Amizade que nos deve unir. Sermos o azul de quem de nós necessita. Abraço imenso

  8. Eulália Pereira Coutinho

    Linda esta história comovente. Amor. Amizade
    Gratidão. Sentimentos únicos e puros.
    Sentimentos que permanecem no tempo.
    O azul é mais azul.
    A sensibilidade do Poeta sempre presente.
    Obrigada,meu Amigo.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Fazer do azul a cor da Amizade. Sermos gratos e solidários. Sermos o uivo que aconchega. Tão bom o seu comentário. Abraço

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