Crónica de Jorge C Ferreira
Coisas da vida
Um corpo que treme. Outro que agasalha. A complementaridade que faz falta para sobreviver neste triste mundo. O calor que é escasso para muita gente. E demasiado para outros.
Uma Mãe dá de mamar ao filho. A mama coberta com uma fralda de pano branco. O leite que parece querer acabar. Talvez falte alimento à Mãe. Talvez só ansiedade do que será o futuro daquela criança. Um leite, apesar de tudo, único. Um leite cheio de amor. Leite vida. Havia também o leite em pó. Leite que os mais necessitados recebiam da igreja ou dos lactários. Sempre fomos o país da caridadezinha.
Muitas mulheres deram de mamar a filhos de outras mulheres. Ainda correm rumores sobre as crianças assim amamentados. Será que tal facto os mudou em alguma coisa? Que ligação restou após o final desse acto de amor? Muitos foram alimentados por escravas negras, nos países escravocratas, e em muitos outros.
Numa parte mais esconsa da casa onde nasci, um menino chamado Jesus era aquecido pelo bafo de uma vaca e um burro. Muito gostava eu de tocar as figuras do começo daquela história, para mim fascinante. Menino, que se fez homem e foi morto. Menino que foi apelidado de rei dos reis. Tudo isto e muito mais me foi contado e ensinado desde pequenino. Toda a chamada “Via Sacra”. Por fim, a cruz.
Hoje, na terra onde me contaram que Jesus nasceu, a guerra grassa de forma que incomoda os que amam a paz. Uma carnificina sem nome.
“Ser solidário”, canta José Mário Branco. Uma forma de ser, de estar, que cada vez é mais necessária. Ajudar os outros e sermos ajudados. Tudo sem nada pedir em troca. Apenas a alegria de viver como uma irmandade. Amigos de sangue. Amigos para sempre.
Havia quem se juntasse, um fazia sangue num dedo que depois unia ao dedo de outro que tinha executado o mesmo ritual, e assim juravam amizade para todo o sempre. Ficavam irmãos de sangue. Rituais iniciáticos de tempos muito antigos. O tempo do álcool, da água oxigenada, do mercurocromo, dos pachos no peito, das papas de linhaça, da gaze esterilizada, dos rolos de adesivos, rolos em metal que, vazios, iriam ser brinquedos, e dos termómetros de mercúrio.
Ser operado às amígdalas a sangue-frio numa cadeira de metal dos hospitais civis de Lisboa. Atados e com um aparelho de metal na boca, pior que um açaime. Valiam-nos os gelados dos dias seguintes. Mas o medo ainda hoje se sente.
Eram tempos difíceis. Tempos duros. Sempre sonhámos e lutámos por uma vida melhor para os nossos filhos. Hoje, quando vejo a lista dos serviços fechados nos Hospitais Públicos fico com uma dor tão vadia que não sei explicar. Um sofrimento enorme. Uma enorme incapacidade.
Vi, na televisão, uma criança a ser assistida, pelo INEM, deitada no solo em frente de um hospital e depois ser transportada para outro hospital. Onde estamos? Que país é este?
Há um país onde o Sr. Presidente é pai do Dr. Nuno de quem nunca tinha ouvido falar.
«Olha que tu hoje foste juntando histórias desde os tempos antigos até ao que temos agora.»
Fala da Isaurinda.
«Sim, deu-me para isso. Escrevi assim e já está.»
Respondo.
«Vai escrevendo. Mas tens de me ler o que escreveste antes de enviar.»
De novo Isaurinda e vai, com ar resoluto.
Jorge C Ferreira Agosto/2023(418)
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Obrigado Maria, belo comentário. Tanta injustiça neste mundo. Tanta mentira transformada em verdade! Tanto sofrimento. Tanta morte por um bocado de terra. A falsa diplomacia. Andamos nisto desde sempre. A crueldade. Citas Sérgo Gofinho, o sonho que nos povoava nesses tempos únicos que vivemos. A minha imensa gratidão, minha Amiga. Abraço enorme
Excelente texto. Tanto e tão bem diz das “coisas da vida”, marca que o define sempre com a verdade das suas palavras. Espalham amor e solidariedade, tanto me ensina. Eu também gostava muito, de olhar esse menino, que se aquecia com o bafo de uma vaca e um burro. Ainda hoje gosto. É triste, saber que no lugar onde nasceu, é hoje um lugar de massacre e de fome. As mulheres, algumas são mães não se alimentam, como podem elas alimentar os filhos acabados de nascer? Um bebé um ser indefeso, que não pode saborear o leite de sua mãe, esse líquido quase divino. Um acto de amor que não se cumpre. Mais não digo. É tão importante o que escreveu, meu querido escritor. É preciso avivar a memória de muitos.
O meu abraço leva-lhe a minha gratidão, meu Amigo.
Obrigado, Maria Luiza. Tão belo o seu comentário. Uma sesabilidade que comove. Sempre generosa. A minha gratidão. Abraço enorme
mais uma segunda feira. fim de tarde. trouxeste-nos a história do menino de quem se contaram outras
tantas histórias.
teria nascido numa manjedoura e
viveu para o sacrificarem. numa cruz
contam-se dele milagres e espantos.
ressurreições
estranhas magias
palavras de andar de boca em boca
principalmente perdões
e encantamentos.
dele se diz que apregoava amor e
o seguiam cegamente homens e mulheres
que o ouviam.
em silêncio.
o amor é uma causa estranha.
leva a lugares que não nos passa pela cabeça. corredores. labirintos. fios com nós.
à infância dos apegos
à zona limite onde podem caber todas as confissões
mesmo as mais íntimas e indiscretas.
penso que a minha avó paterna terá amamentado outras crianças além
da sua. peito de sugar amor. leite
bendito.
e sei de outros amores.
como esses. de sangue.
de promessas. para a vida.
pouco mais sei sobre o amor.
que pode doer.
que deixa nódoas negras
que não se vê mas antes se sente.
e é um êxtase
um devaneio
uma insanidade
ou um tanto faz?
que parte em estilhaços
este vidro de que somos feitos?
acho que escreveste sobre amor.
parece-me bem que sim.
e também de desamor.
e eu que já percorri quase toda uma vida
ainda tenho muito que aprender.
sobre amor. filosofia. a arte de escrever.
contigo também, meu escrevinhador que hoje ensaiaste um novo passo de dança.
quem sabe…onde nos levarás mais?
Obrigado Mena. Foi em êxtase que li o teu comentário..lindo como sempre. Dizes que ” o amor é uma causa estranha”. Quantos amores intensos por viver? Quantas formas de amar? Somos um enigma. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.
Excelente crónica! Tudo vivido pela nossa geração, de norte a sul.
Mais uma vez viajei no tempo. As crianças que esperavam ansiosas as dádivas vindas dos países ricos. O leite em pó, distribuído na cantina escolar. Tanta pobreza. Tanta diferença social.
A esperança de dias melhores. A luta pela liberdade. Igualdade.Justiça.
Tanta esperança vã.
A guerra entra casa dentro, todos os dias, a qualquer hora. Crianças mortas de forma cruel, famílias destruídas, por motivos ignóbeis. O mundo inteiro a assistir.
A humanidade está doente. Não era este o futuro que queria deixar a filhos e netos.
Corrupção, negócios escuros, guerra de interesses. Vale tudo.,
Que desilusão!
Obrigada Amigo por estar desse lado.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Tão assertivo e bem escrito o seu comentário. Foi directa ao âmago do que corrói a nossa sociedade. Os negócios que matam os mais debilitados. Estar aqui é, para mim, muito gratificante. A minha imensa gratidão. Abraço grande
A história faz-se de tantas outras estórias, diferentes como a vida. Tudo se repete, o bom e o mau. A memória de uns é o esquecimento de outros, e assim se escreve a preto a história que fica ou alguém apagará , sempre foi , sempre acontecerá varrer para baixo do tapete desde sempre…
O tempo avança, a história repete -se, cruxificam-se uns para salvar os de sempre, os desafortunados não podem querer, é-lhes proibido sonhar e, assim vai a vida que sempre conheceram de seus avós e de seus pais. O sol não nasce igual para todos. Que bem predestinou a grande Natália Correia (…) Um abraço imenso meu amigo. Por aqui vamos embora não queiramos ” Ir por aí, não, não queremos ir por aí”
Obrigado Cecília. Que bom estares zqui com os teus comentários. Comentários que têm uma marca própria. Já viste contra quanta guerras lutámos? Quntas desgraças denunciámos? Andamos nisto desde o principio do tempo. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.
Sublime! Parabéns Jorge👏👏
As histórias entrelaçadas do passado, muito criativas e reais, vindo desembocar na tal “dor vadia” do presente.
E que dor meu deus ou deuses🥲
Celebrou-se ontem mais um aniversário da Declaração dos Direitos Humanos. Como festejar neste inferno?!
Vi imagens de dois irmãos, ainda crianças, a despedirem-se de outro irmão acabado de ser morto, também criança, todo ensanguentado no chão… Indescritível. Como ficar indiferente? Depois vem o “veto” de quem se acha democrático. Que hipocrisia, que nojo!
São HUMANOS os que apoiam e cometem todos estes crimes hediondos???
Bem haja, Jorge
Obrigado Fernanda. Que comentário tão importante. As falsas diplomscias. Os vetos da vergonha que nos envergonham. Os milhões do negócio da indústria de armazenamento. O sofrimento dos povos e as crianças massacradas. A minha imensa gratidão. Abraço grande
Crónica de Jorge C Ferreira – COISAS DA VIDA
Excelente crónica, onde ressaltam as dificuldades vividas por muitos na nossa meninice, em que as desigualdades e diferença de oportunidades era uma constante. Triste o facto de continuarem a existir guerras, desigualdades e incongruências, que fazem com que muitos tenham uma vida muito difícil. Acredito piamente que qualquer um de nós pode contribuir para mudar o mundo, mas está difícil, muito difícil…
Obrigado por nos fazer refletir sobre isto tudo!
Obrigado Margarida. Belo comentário. Toca em todos os aspectos que nos afligem. Passámos uma vida inteira a tentar lutar contra os flagelos que têm afectado este mundo e este país. Assim iremos continuar até que as forças não nos faltem. A minha imensa gratidão pela sua presença. Abraço forte
Obrigada eu, caro amigo Jorge. Adoro ler as suas notas/poemas diários, que falam diretamente à nossa alma, bem como as crónicas no Jornal de Mafra (que é a vila onde vivo atualmente, apesar de ter muitas saudades de Cascais). Abraço grande
Adorei a tua crónica Poeta Jorge C. Ferreira! Que linda viagem fiz pelo passado. Tempos difíceis que temos vivido! Como será o nosso futuro? Não se adivinham tempos fáceis! Bem hajas.
Obrigado Claudina. Que bom estares aqui a comentar. Sempre fomos vencendo os escolhos da vida. Estamos aqui. Quanto ao futuro, temos que esperar por ele. Vamos lutar pela PAZ. A minha imensa gratidão. Abraço grande.
A dor da impotência que sentimos perante as injustiças, perante a crueldade, perante os horrores das guerras, é essa “dor tão vadia” de que falas. E é tremenda! Não podemos permitir que alastre. Não podemos sucumbir a ela. Tem de haver uma saída para um mundo onde impere a justiça, a empatia, a humanidade, a Paz! Um mundo onde as crianças sejam felizes e todos, sem excepção, tenho direito a uma habitação e a uma vida digna. “Paz, Pão, Saúde, Educação”! Temos de voltar a cantar a canção!