Cansaço
por Jorge C Ferreira
Há corpos virados do avesso, muita ansiedade pelos corredores, muitos fatos desconfortáveis. Uma agonia que vai alastrando. O último vómito que não chega. Uma espera que não se sente. A plena inconsciência induzida. As portas do desconhecido prestes a abrirem-se. Uma noite de uma claridade única. Como são compridos os corredores!
Vou sozinho à feira que está fechada. Tento andar clandestinamente no comboio fantasma e na montanha russa. A casa da bruxa está fechada. A Dora já se esqueceu de tudo e reformou-se. Nem uma cigana para me ler a sina. Já não acredito em nada. Ninguém acredita em mim. Um ciclo tremendo. Um lugar secreto onde me encontro com outro e esse outro, sou eu. E não saio daqui.
Tento escrever um poema na resposta a uma poetisa:
Pintei-me para experienciar o teu poema
Chorei
Umas gotas negras chegaram-me à boca
Trinquei-as
Uma explosão de sal e água tingida
Uma aventura.
Disseram-me que as palavras eram bonitas. Fiquei contente, mas sempre com dúvidas. As minhas eternas dúvidas sobre o que escrevo. A minha falta de confiança. A medição do risco que, com a idade, se adensa. Os cabelos brancos a ditarem as suas razões. Quantas folhas rasgadas. Quantos blocos guardados. Os lápis sempre a serem afiados. As canetas sem carga. As borrachas já gastas e um mata borrão que já não tem utilidade. Um carimbo e a caixa de tinta. Um sinete e o lacre.
Os tubos, a respiração que já não controlam. Deitados de bruços vão tentando resistir sem saberem. São corpos que já não respondem aos donos. Uma espera que se prolonga. Os trabalhos forçados dos profissionais que cuidam desta gente. Os medicamentos experimentais. A impotência. O cansaço. Respirar é necessário. Também a família em casa respira já mal. É um sentir que se vai expandindo. Um mal-estar que percorre avenidas, ruas e pracetas. O largo onde todos se reuniam está deserto. Passa um espanta-medos de bicicleta. Ninguém está à janela.
Vou a um jardim muito antigo da minha cidade. As árvores, os bancos, um coreto e o namorado que espera sentado escrevendo na madeira o nome de quem tarda em chegar. Não há banda alguma no coreto. Dois homens passam de mão dada. Os velhotes que jogam dominó olham com ar alarmado. Já não é o jardim onde, aos domingos, os magalas e as criadas de servir vinham namorar. Tudo mudou ou está a mudar. Muita gente não respira o ar das árvores devido às máscaras. Outros passam apressados como se viessem a ser perseguidos por um cão raivoso. Sento-me um pouco junto a uma árvore muito antiga. Respiro fundo. Vou ver os patos. Venho-me embora. Sinto-me melhor, mais solto. Houve um verde que me animou e um cisne que me namorou.
Não sabemos o fim de nada. Não sabemos quando tudo acaba. Quando os sinais de alerta irão disparar. Quando o dia começa a despertar e é igual à noite. Quando a Lua e o Sol se namoram. Quando os sinais dos aparelhos estão dentro dos parâmetros e os apitos são estáveis. Quando todos os órgãos funcionam com ajuda externa. As vidas vão continuando. Uma espera desassossegada. Os telefones sempre em alerta.
Continua a espera.
«Olha, tu estás completamente apanhado por isto. Tens de ter calma.»
Fala da Isaurinda.
«Eu tento, mas isto já cansa. É demais. Não nos podemos deixar de cuidar.»
Respondo.
«Isso, tens razão, temos de tomar os nossos cuidados. Mas não podemos andar a pensar sempre no mesmo.»
De novo Isaurinda e vai, um sorriso de soslaio na mão fechada.
Jorge C Ferreira Outubro/2020(270)
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
A vida em sobressalto, a luz do túnel que se tarda a vislumbrar, as divagações que nos entretecem, o sonho que insistimos a aventurar entre dedos, as dúvidas que nos assaltam pelo caminho. Gostei muito Jorge um abraço.
Obrigado Susana. Que bom ter gostado. Que bom vir a este espaço. Faz falta. Um grande abraço
Um prazer, abraço Jorge.
Outro abraço, Susana. Obrigado
Obrigado Arlete. Que boa a sua presença neste espaço. Grato pela sua opinião. Abraço Grande
Retenho-me no poema que tentaste/escreveste à tua amiga. É lindo. Como todas as palavras e sentires que vêm desse desassossegado Ser.
Entendo o teu/nosso cansaço. Mas sei que é juntos que não só, não vamos desistir, como vamos resistir e acreditar. Continua a seguir os conselhos da Isaurinda. quanto a nós, sabes que vamos continuar sempre aqui, á tua espera.
Abraço Poeta.
Obrigado Cristina. É toda esta interação que me faz viver. Continuarei a tentar resistir. Abraço
Flashes de ontem e de hoje, da vida apressada que temos com inquietude nos tempos que correm. Toda uma incerteza que vivemos em tempo volátil.
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Sim, meu amigo. Este tempo tão incerto. Tudo o que se passa e não passa. Abraço
Como sempre vou pela tua mão à aventura do que te traz memorias, arrisco a ser clandestina no teu passado, das tuas vivências (… ) Tenho memórias, lembranças que prefiro dá-las como orfãs, sei, e nada sei, vou por aí, talvez um dia me confesse pelo pecado dos outros. Já pensei tal como tu ir num passeio clandestino, ir, apenas isso. Regressar tenho imensas dúvidas, vivo não com medo, vivo por mim com receio da dor, a minha, e a que deixarei nos outros… Meu muito estimado amigo, meu amigo escrevinhador, que insegurança? Se todos os que te lêem gostam e te estimam? Até poderia ser apenas um ou uma, quando o coração e a alma se unificam saem palavras que alertam mas não incomodam, pelo menos os “aventurados” os que entendem o sentido da vida dentro das palavras. Bem haja por estares presente com o que melhor sentes, a alma limpa de sentimentos puros tal como as amizades que te chegam. Aquele abraço, fica bem!…
Obrigado Cecília. És uma amiga generosa. Escreves bem o que te vai na alma. És a companhia necessária neste espaço.
Mais uma bela crónica. As cicatrizes que se se instalaram e não saram (ainda?!). Sim. Visceralmente cansados e sedentos de afecto. Uma solidão a prologar-se e a insanidade a emergir. Como contê-la?
Escrever sempre. Mesmo (e sobretudo) neste deserto afectivo.
Obrigado Isabel. Sim, minha Amiga, os afectos. Este incompleto viver. Este desviver. Vou escrevendo. Abraço.
Perfeita esta forma de escrever. Crónica excelente. A vida , o tempo que atravessamos. A resiliência. A resistência.
Lindo o poema, resposta à poetisa.
Que tempo este meu amigo. A incerteza. O cansaço. A falta de afectos. O dia a dia tão igual e tão diferente. Dia que se confunde com noite. Ninguém fica de fora desta luta desigual. O cansaço leva ao desânimo.
Obrigada pela generosidade da partilha de crónicas e textos tão cheios de verdade é sensibilidade.
Continue a cuidar-se, meu amigo. Continue a escrever da forma que tão bem faz.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Tão perfeito o que diz. Grato por participar neste espaço. Só lhe vou expressar a minha gratidão. Abraço Grande
Jorge.
Posso começar pela tua falta de confiança?
Pelas folhas rasgadas, os lápis afiados, as canetas sem tinta e as borrachas já gastas?
Posso?
Posso ir buscar as palavras que ficaram no lixo do caixote e os textos que ficaram esquecidos entre as resmas de papel?
Posso?
Ir à procura desse medo que entra rastejando pela porta, vindo sei lá de onde, se aloja nos rodapés, por baixo dos tapetes, nos sofás, na cabeceira da cama e na dobra dos cobertores?
Subtil. Perverso. Quase sem rasto.
Posso?
Mesmo que não deixes, eu vou.
Vou buscá-lo. A ele, ao medo e à insatisfação de ti próprio.
A esse desassossego…
Porque és tu o trovador.
O descobridor das palavras que bramem. Das outras. As que são livres como rios. As mansas, de amor. As que são simples e as que arrastam correntes. Pesadas. Feridas. Adoecidas. Como este tempo de “cólera”. Estes dias de guerra calada. A mortandade que choramos.
És tu o sonhador e o irmão das marés e dos ventos uivantes.
O escriba.
O escrivão-mór.
O eloquente.
E em vez de agradeceres, estar vivo, estar aqui, poderes continuar a escrever, a dialogar connosco que te lemos, não calas a mágoa que te invadiu e ocupou a mente?
Que é feito do mestre?
Onde colocaste a reverência e a admiração de quem te segue diariamente e lê os textos que tão hábil e sensivelmente crias e connosco partilhas?
Onde? Onde?
Jorge.
Ao pé de ti pouco sou. Uma aprendiza de feiticeiro. Nada mais.
Amante do que nos dás em forma de estados d’alma. Da fantasia. De momentos de ternura. De apegos. De ensinamentos. De vivências e das aventuras por caminhos que contigo percorremos.
Por isso, meu amigo…
Há que encarar esta realidade. Há que lutar como um dia lutaste contra um monstro chamado repressão.
Há que erguer a cabeça. Ser resiliente. Permanecer com os devidos cuidados.
Mas viver. Viver!!!
Creio em ti. Como todos nós. Não me desiludas, meu amigo.
Mantém-te firme.
Todos oscilamos. Todos temos momentos de ansiedade e de dúvidas. Todos combatemos o medo. E alguns de nós, ficam no campo de batalha. Esquecidos.
Mas tu, não!
Tens um testemunho.
Uma marca.
Já fizeste um filho, certamente plantaste uma árvore e escreveste um livro. És um homem completo. Regozija-te!
Deste lado, continuamos à tua espera. Tu sabes.
Até amanhã. No lugar do costume.
Obrigado Mena. Tanto o que dizes. E dizes tão bem. Grato por tudo. Só vou pedir que leiam o que escreveste. Tão gratificante. Abraço.
Meu querido amigo Jorge, muito boa a crónica, assim como as que esperamos quando chega o fim de tarde de 2ª feira. Gostei muito do teu poema de resposta à amiga poetisa. Original e muito interessante. Não tenhas dúvidas, porque escreves de uma maneira que é uma marca tua. Eu gosto muito. A crónica segue o caminho que lhe traçaste, sobre estes tempos difíceis que atravessamos. Está lá TUDO; o que se passa, o que se sente. ” Uma espera que se prolonga. O medo e, com as máscaras, respirar o que se expirou. Ficamos um bocadinho atordoados Tem de ser, pelos outros e por nós. Há cumprimentos, mas muitas vezes não sei quem são. Há expressões em olhos que reconhecemos, mas nada mais. Eu conheceria o teu olhar à distância. Outros têm, ou estão agora, expressões frias e distantes. Bela a tua crónica e tão actual.
A Isaurinda conhece-te bem. Fazes bem em a ajudares. Não é fácil entender o que se passa. Beijinhos amigos.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Sabe tão bem ler-te todas as semanas. É por coisas assim que continuo a escrever. Que leiam o que aqui escreves. Abraço enorme.
Tentamos inventar os dias. Resulta no momento. Essa é a energia que devemos guardar com muito cuidado. As emoções difíceis de gerir. Estamos exaustos, no entanto, não poderemos desistir. Devemos acreditar que vai demorar para melhorar. Esses lápis que vais gastando ao longo da vida são preciosos. Texto doloroso escrito com a tua especial lucidez. Resistir sempre! Meu amigo, um abraço grande. Até para a semana Jorge.
O nosso amigo Jorge Ferreira escreve tudo quanto lhe vai na alma , na nossa alma !! OBRIGADO por existir ..
Obrigado Arlete. Que agradável a sua presença neste espaço. Muito grato, eu, pela sua existência. Abraço
Obrigado Regina. Vamos inventando a vida. Nesta semi-escuridão que nos é oferecida. Sei que nunca iremos desistir.abraço grande.