Antes da pandemia
por Jorge C Ferreira
Ela leva o mais pequeno para a creche. Ele o mais velho para a escola. Vão ter escola e prolongamento. Só vão sair quando estiverem cansados, para não cansarem mais os cansados pais.
Mais de uma hora até ao trabalho. Uma para lá outra para cá. Tempo que não é pago. Quem te mandou ir viver para os subúrbios?
As novas lancheiras. A comida aquecida no micro-ondas. Meia-hora para almoçar que isto não está para conversas.
O convívio incomoda certa gente. Acabaram as cantinas do meu tempo, as duas horas para almoçar, a biblioteca, o xadrez. Os cafés da baixa. A conversa sobre a vida e o resto.
Já ninguém namora à hora do almoço. Uma pressa sem sentido. Um sentido que não se entende.
Correm, correm. Os comboios, os barcos, os autocarros, os carros, os engarrafamentos e os miúdos esquecidos nas escolas.
Produzir, produzir. Esta é outra batalha da produção. Esta é outra produção.
Dar banho aos miúdos, vestir o pijama, dar o jantar. A comida comprada num pronto-a-comer. O sabor industrial. Ou então um frango assado à pedrada.
A falta de paciência, o filho de castigo. A televisão a berrar. As consolas e os jogos. A jogatana do consumo. A cada um o seu aparelho e ninguém fala com ninguém.
Toca a deitar. Meninos para a cama. Amanhã é outro dia.
Os miúdos adormeceram. O cansaço a passar factura.
- Anda cá, senta-te aqui um bocadinho.
-
Oh querido nem penses nisso estou tão cansada que nem me sinto.
Começa a discussão.
- Cala-te que acordas os miúdos.
-
Sempre o mesmo a calar-se… sempre o mesmo.
Deitam-se de costas voltadas. Nem um beijo, nem uma carícia.
Amanhã mais do mesmo…a mesma corrida. (A sorte que temos em termos trabalho.) Que coisa mais falsa. A frase fatal. A desistência da dignidade.
O pronto-a-vestir, o pronto-a-comer, o pronto-a-servir, o pronto-a-morrer.
- Está a chegar o fim-de-semana.
-
Pois, mas o director pediu-me se podia ir trabalhar.
-
Tinha de ser… pagam-te?
-
Em que País é que tu vives?
Recomeça a discussão.
O divórcio. A discussão dos bens. A casa hipotecada. As prestações dos carros. As pensões para os miúdos. Os miúdos em bolandas.
A procura de novos aconchegos. Não tarda muito, os meus, os teus e os nossos. São as mesmas famílias, mas parecem maiores. São velhos os novos problemas. A falta de tempo na raiz de tudo.
O tempo que nos é roubado. A falta de conversar à mesa. A necessidade de desligar todos os aparelhos.
É então que vejo um velho sentado no jardim a desligar o aparelho que lhe impingiram para usar nos ouvidos. Encosta-se e descansa.
Foi a sua forma de dizer basta. Não quer ouvir mais nada. Muitas das coisas que tinha em casa deixaram de fazer sentido. Deita tudo fora. Alguém vai aproveitar aquele barulho.
Silêncio.
Um grito que se liberta. A vontade de ser diferente. O monte de livros para ler a diminuírem. Ainda um dia nos vão fechar em casa.
Tenho de comprar mais livros.
“Que te teria dado para escreveres isto?»
Fala de Isaurinda.
“O tempo tem ciclos. Sentia que algo iria acontecer. Nunca pensei que fosse isto.»
Respondo.
«Tu, por vezes, assustas-me.»
De novo Isaurinda e vai, o lenço a dizer adeus.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
A crónica é magnífica. Retrato de tempos muito difíceis. São as palavras de verdade de vidas interrompidas. Com a tua sensibilidade de escutares os outros, sempre atento. Muitas palavras vão saltar para vários textos. A vida tem ciclos, mas este é sentido e desconhecido mundialmente. Transmite medo. Abraço meu Amigo.
Obrigado Regina. Sim temos ciclos, temos é que ver como saímos dos vários ciclos. Cada vez a diferença entre ricos e pobres é maior. O mundo necessita de uma volta. Abraço.
Uma crónica muito bem escrita. Uma descrição perfeita do que vai nas nossas casas e nos nossos corações.
Não assustes a Isaurinda, querido Jorge. Ela precisa de ti, assim como tantos de nós. Conscientes da realidade temos de manter a serenidade. Todos juntos.
Abraço meu e um beijo especial à Isaurinda.
Obrigada
Obrigado Cristina. Não quero assustar ninguém. Se conseguir avisar alguém já é bom. Temos de mudar. Não me perguntes como. Mas nada se faz sem sofrimento. Abraço.
Meu amigo
Que tempos!
Que dramas!
Se isto vai ser pior que uma guerra e a guerra ainda não acabou, a tinta e o papel que vais gastar a descrever as cenas que vamos ter por aí. Ainda nem sabemos quando começa o novo ano lectivo. Os pais já não sabem o que fazer às crianças que têm em casa sem aulas. Os dramas familiares que vão por aí.
Os netos não podem ser entregues aos avós, a pandemia continua a ser um susto para todos e quando os temos temos que seguir normas e regras. Enfim, vamos aguardar. Um abraço e obrigada por não desistires. És de fibra! Parabéns!
Obrigado Fernanda. Se não fosse a pandemia, seria outra coisa, É nas crises que se fazem e desfazem fortunas. Vivemos num mundo muito injusto. Temos de resistir. Tu sabes como. Abraço.
A vida de pernas para o ar…
Abraço Jorge, gostei da crônica.
Obrigado Susana. Precisamos de ficar direitos e prontos para nos defendermos. Este mundo está perigoso. Abraço.
A vida tem ciclos. Dei por mim a percorrer os ciclos da minha vida. O tempo em que havia todo o tempo do mundo. O tempo em que saia de casa para o escritório na Rua da Madalena, numa Lisboa onde encontrava as mesmas pessoas todos os dias. Pessoas que faziam parte dos nossos hábitos. O tempo em que a hora de almoço, também dava para conversar e passear.
Maus tarde o tempo de ser mãe, com menos tempo, mas ainda assim sempre com tempo de refeições em família e tempo de conversar.
Hoje, avó à distância a tentar preencher o tempo que cresceu com o confinamento.
Resta-me aproveitar as novas tecnologias e aprender um pouco com estes textos e crónicas extraordinárias que partilha.
Obrigada meu amigo. Grande abraço.
Obrigado Eulália. Fizemos e fazemos o mesmo caminho. Todos esses ciclos e todas as lutas que fomos enfrentando. Somos nós e o nosso entorno. O mundo está estragado. Eu esperava uma nova crise. Não esperava que fosse assim. Vamos resistir mais uma vez. Abraço.
Tudo fica do avesso; as vidas desequilibradas; os sonhos adiados e cada um procura-se a si mesmo.
As vidas sofrem com a pandemia social; uns cumprem por devoção e respeito pelo medo que se apodera e outros esquivam-se aos deveres sem cerimónias. Quem vai pagar com juros altos esta hipoteca forçada?
Ao que dizem, as sequelas não desaparecem tão cedo!
É preciso não desanimar mas, pergunto: por quê a mim?
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. A nós, porquê a nós? Para mim, por nenhuma razão especial. Porque calhou. Calhou estarmos vivos quando isto aconteceu. Agora é aguentar os altos e baixos, o movimento dos números, dos gráficos, das curvas e não nos deixarmos enganar de novo. O cenário está montado. Abraço.
Crónica da vida, crónica do ” antes de “. E cá está a tua escrita/ filme. Tal qual a vida real das gentes da ” classe média “, porque nem a ” classe média baixa” tinha esta vida real, porque os ordenados tão baixos não davam para as Creches. Talvez a Junta de Freguesia seja dinâmica e tenha uma junto ao” Jardim de Infância”( pré-primária) e ” Tempos Livres “. Tu fizeste um retrato com uma precisão de realizador. Cena a cena, era a vida assim, mil vezes repetida. Cansaço de pais e filhos. Um cansaço que lembra a indiferença. Para perder menos tempo leva-se a ” lancheira ” arranjada com sobras do jantar. E mais uma vez o cansaço do eternamente repetido a levar a conflitos, também em cansaço, às vezes sem retorno. Tudo, por ti, tão bem explicado que vêem-se as cenas . Quando chegar o ” depois de…”, o filme vai ser outro. Prepara-te meu ” escrevinhador”, meu Amigo/ Irmão. Que tempos virão para os filmares em palavras reais? Diz à Isaurinda que espere; o filme ainda não terminou. Abraço apertado.
Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Que olho de realizadora. Como transformas o meu texto num filme! Frame a frame vamos caminhando. Teremos mais remakes?. És genial. Abraço.
Meu poeta. Meu cronista. Meu contador de estórias. De outras aventuras e desventuras. De fantasias e de realidades de outrora.
Aqui ficaste. Um flash do passado. Quase recente.
As corridas. O stress. O adiar a vida. O “combate”.
Os intervalos. Instantes. A euforia e logo a tristeza. O não sabermos de nós. Quem éramos, afinal?
Os beirais com andorinhas. A falta que um poema faz. O convite do mar. O abrigo da floresta. Um repousar de olhos. Estar com o outro. Visitar a simplicidade de existir. Ver. Sentir. Intuir.
Ir até ao fundo. Não adiar o amor. Uma simples carícia…
Mas havia um tempo em que não havia tempo.
E depois?
Depois, confinados, reaprendemos a olhar-nos. A ter tempo. A não ter ponteiros. Nem calendários. A esperar. Pacientemente.
Também a ter medo.
Também a perceber que a morte não é anunciada.
Assim vivemos.
Entre o que fomos e o que não sabemos poder vir a ser…
Como te compreendo, amigo meu! 💗
Obrigado Mena. Tão bom o que escrevestes. Ter-te aqui é uma mais-valia. Fosse eu só uma parte do que dizes e já seria muito. Como gosto de te ler. Abraço.
” O tempo tem ciclos ” Ciclos esses que já levaram a destruição de grandes civilizações…..
” Tempo tem ciclos ” Ciclos esses que levaram civilizações desaparecerem sem uma explicação lógica ——
Obrigado Adolfo. Vamos tentar resistir. Já passei por muito. Abraço.