“A Vida e as Vidas”
A barba crescida. O cabelo enorme. Os caracóis. Uns óculos escuros de aros redondos. Umas calças esquisitas. Uma camisa de colarinhos enormes. As cores exuberantes. As botas de tacão alto. Mais dez centímetros de altura. A noite que também cresce. Aparece, como num sonho, a virtual avenida de todas as cores. Milhares de luzes que nos embebedam. Fugimos. Acordamos.
Uma cave. Um refúgio. Uma estranha aventura por inesperados ghettos. Choros de guerras ainda por esquecer. Há uma senhora, muito velha, que teima em ir para a bicha do racionamento que já não existe. A mercearia onde tudo se vende a granel. A manteiga, o papel vegetal. Os cartuchos. O papel pardo.
Aparecem grupos de gente controversa. Esquenta-se a conversa. Cantam-se diferentes cantigas. São diferentes os cafés. Saltam navalhas. No lago dos barcos de um campo grande, enfrentam-se as tribos. Cantam e dançam as raparigas. Cantigas de todos os tempos. Uma história que nunca acaba. Os cabedais e alguns sinais rasgados no corpo. Ligaduras e gritos de guerra. Outros cantos. Desmaia alguém nos braços de uma rapariga muito bela.
Desce-se a rua. Chega-se à praça da estátua grande. Dali partem muitos eléctricos e autocarros. Na esquina uma tasca emblemática. Vende-se pão com molho de iscas. Uma frigideira com um molho muito antigo. O sabor a engrossar. Um copo de três e está feito o mata-bicho. Não se pode perder o carro operário.
Há um conjunto novo cujas músicas ainda não nos chegaram. Mais um filme cortado num cinema da cidade. Um livro de poemas eróticos proibido. Embebedam-se os coronéis da censura. Uma manifestação proibida e uma carga policial. São presos alguns dos nossos. Somos um país cinzento que usa chapéu.
O rapaz acordou e casou-se com a rapariga. Foram viver para uma casa clandestina. Viviam com as armas das palavras e faziam planfletos que anunciavam a liberdade. Deixaram de usar cabedais e têm uma bicicleta. Passaram a gostar do papel bíblico e de livros proibidos. Anunciavam futuros e acreditam em tudo. Amavam-se entre lençóis gastos e tapavam-se com um cobertor de papa.
Agora é que vai ser. É a fala do pessoal do reviralho. Um novo golpe falhado. Uma greve e novas prisões. Os cafés, os intelectuais. Os operários e o choque. A polícia e os cães. Os carros com canhões de tinta azul. Marcar os chamados “subversivos”. A guerra e a morte. As viúvas todas de negro. Um país cada vez mais escuro. A televisão censurada. O preto e branco de todas as falsidades. «Boas festas e um próspero ano novo para todos os meus familiares.»
As danças nocturnas. As bebidas de importação. As pistas de todas as danças. Um conjunto estrangeiro que vem cá tocar. Arranjar bilhetes. Esperar que tudo aconteça. As pulseiras com os nomes trocados nos braços. Um pullover cor de tijolo. Uma franja enorme. Um anel igual à pulseira. Uma saia que mal se vê. Um enorme atrevimento. O namoro!
Um dia foi o dia. Um dia que foi pequeno, mas com muito que contar. Um dia aconteceu. O País ficou colorido. Um dia conto.
«Que coisas contas! De quantas coisas falas?»
Fala de Isaurinda.
«Falo de vidas dentro da vida maior. A vida do país.»
Respondo.
«Sim, sim. Não fazes mal, nem bem.»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Janeiro/2019(193)
Ficou tudo dito! Muitos parabéns Jorge! Adorei! Um beijinho
Obrigado Madalena. Que bom tê-la por aqui. Abraço
Querido amigo, são sempre momentos de enorme emoção, estes, em que te leio. São momentos que aguardo com grande ansiedade. Hoje emocionei-me particularmente. A forma tão realista que tu falas de uma época que embora não vivendo, sempre me senti sua. Um sentir que nunca o saberia descrever em palavras. Hoje e mais uma vez , agradeço-te por isso também.
Obrigado Cristina. Tão gratificante ler as tuas palavras. Abraço.
“A Vida e as Vidas”.
Excelente, Jorge. Como gostei!
Revi-me totalmente nela, eu, a rebelde jovem de uma ilha, que sonhou e partiu em busca da sua própria liberdade e, continuou a sonhar e a manifestar-se, às escondidas, oor um país livre e democrático.
Grata, meu amigo, por esta viagem ao passado da minha vida.
Beijos
Obrigado Manuela. Companheira de luta, das coisas proibidas. Uma ilha que viaja. Abraço
A crónica em formato muito especial. “A Vida e as Vidas”, um Conto excepcional. Tu és personagem neste já filme que idealizo. A coragem de ser em tempos conturbados. Por vezes a felicidade à pressa. O anel igual à pulseira. Não vivi na altura, mas, sim agora. Tanta emoção colorida. Abraço Jorge.
Obrigado Regina. A coragem de ter coragem. As caminhadas que libertavam. Os sinais e os símbolos. Abraço
A vida de antes e as vidas depois. Antes, os refúgios para o amor, as tertúlias, os prazeres. A originalidade no vestir para provocar. A originalidade que, dentro de alguns limites, eram aceites. Grupos pequenos para ” contar a última “. Gabardines em homens que procuram escutar. Carros com homens que perseguem quem foge às regras. Prisões à luz dos dias. Um casamento ” faz de conta “. Procurar o mais habitual para que não haja reparos. A clandestinidade. Rolam máquinas dentro de casa a fazer jornais. A guerra. Uma tentativa/ desilusão. Um golpe falhado. Uma luz diferente naquele Dia. Um Dia que aconteceu e trouxe as cores de uma outra VIDA. Tu vais contar. Nós esperamos. E de pano na mão a Isaurinda adivinha. Não vai fazer mal, nem bem. Beijo
Obrigado Ivone. Sempre tão belos os textos que aqui escreves. Um luxo que não dispenso. Abraço
Espero ansiosa,saber o que nunca vi nem soube para poder também eu contar.
Um dia,um dia também eu terei que contar.Vejo e observo o descaramento e a total pobreza tanto de fome como de espírito.Sinal dos tempos,tempos e tempo que não mudaram. Um dia,um dia cabe-me a mim contar o que li e vi.
Abraço meu amigo.
Parece que foi ali ao virar da esquina e já passaram tantos anos. Como tu os descreves bem. Foste de novo ao armário . Tiraste de lá a tela, as tintas e os pinçéis. Tens tudo gravado na memória e apresentas a pintura no teu estilo. cheio de cor, de detalhes, de cheiros, de emoções, de sons alegria e dor. Obrigada. Foi assim. Confirmo Belo o que ofereces aos nossos olhos!
Obrigado Fernanda. Estas telas que nos embaciam o estar. As lágrimas da liberdade. Tão bom ler o teu comentário. Abraço
Obrigado Célia. A liberdade é um bem supremo. Um desiderato por que demos sempre lutar. Contar sempre. Abraço