Crónica de Jorge C Ferreira
A Vida
Nossas extensões. Novas vidas que nos abrem novas portadas. Novas lágrimas que nos enchem de alegria. Os primeiros passos, a primeira palavra, a primeira corrida, o primeiro trambolhão, o primeiro choro. A aprendizagem.
A vida é uma corrida. Do triciclo até ao automóvel, passando pela bicicleta, pela mota e continuar a andar a pé. O primeiro voo e a pena de não ter asas. Esperar que os motores não falhem. Eu só guiei triciclos, do resto desisti. Era muito movimento à minha volta e eu com tanta coisa na cabeça.
Os jardins e os parques de todos os desafios. E os amores a viajarem pelo mundo. O mundo que nos abraça e pede ajuda. Mundo, terra, planeta, que vamos destruindo. Esperando o milagre da regeneração. Os que não acreditam em milagres e as teorias do nascimento deste acaso.
Um acaso cheio de encantos e misérias. As contradições e o que nem acreditamos que pode acontecer e, no entanto, por vezes vemos à nossa frente. Os vários mundos. A diversidade de vidas. Os múltiplos não-acontecimentos.
Mas navegar é o sonho feito vela. É como caminhar sobre as águas e não dar por isso. Um sonho de que acordamos enxutos. Saber os portos e saber pisar terras. Atravessar meridianos e paralelos, atravessar canais que nos levam a outros mares e outros oceanos. Provar a água salgada dos mares por onde passamos. Conhecer gente nunca vista. Tentar apreender línguas esquisitas. Apreciar todas as maneiras de viver. Saber vomitar o que não presta.
Trinta passos dados, trinta dinheiros malfadados, trinta sóis escondidos. O frio e o calor, o suor do amor. Trinta camas desfeitas. Trinta beatas esmagadas nos cinzeiros. Uma luz de silêncio que se apaga. Os corredores do terror. Facas que saem das paredes nuas. Um verdadeiro filme de terror. Fugir e salvar-se. Os pesadelos que ocupam as noites e os dias. Perder a noção do tempo. Acordar inteiro. Uma caixa de comprimidos na mesa de cabeceira. Um almofariz e um pilão. Um copo vazio. Nem um pingo de sangue.
Ter medo do escuro. Viver ao contrário. Ser o avesso dos outros. A necessidade de um ruído, um som de fundo. Um rádio de pilhas sempre ligado. Saudades das notícias felizes, quando o povo tinha voz e se fazia ouvir. Lembrou-se de um walkman amarelo por onde acompanhava os acontecimentos enquanto trabalhava. Era uma companhia indispensável. Um vício que ficou, não sei se para a vida.
Por vezes interrogo-me sobre estas manias. Sei que toda a gente as tem. Sei de muitas loucuras, de muita gente perdida pelas noites feitas dias. Sei das várias fases da lua. Dos vários embrulhos da vida. Já lutei contra muita coisa.
Ainda muito novo, aprendi alguns códigos da malandragem. No trabalho, que comecei cedo, conheci o modo como boicotaram o meu trabalho. Tudo ultrapassei, sem vinganças. Nunca pisei ninguém. Sempre fui de ajudar. Perguntam se isto compensa. Compensa o nosso dormir descansado. O estar bem connosco.
“Fazer bem sem olhar a quem!”
«Sei de muitas dessas coisas e sei como és.”
Fala da Isaurinda.
«Obrigado. E não me incomodo com os que acham que sou parvo.”
Respondo.
«Parvos são os que te chamam parvo. Não ligues.»
Ne novo Isaurinda, e vai, a atirar-me um beijinho.
Jorge C Ferreira Outubro/2024(452)
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