Crónica de Jorge C Ferreira | A lama e as laranjas

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
A lama e as laranjas

 

A vida desordenada, perdida, difícil de reinventar. O desconcerto desbragado do mundo. O nunca acontecido. O nunca esperado. Um cimento que derruba vidas. Aquele lamaçal que leva e enterra pessoas em lugares desconhecidos. A segurança escondida em malabarismos de saltimbanco. As pontes e os caminhos destruídos. O vizinho desaparecido. As casas engolidas pela intempérie. A nossa pequenez perante a força da natureza. A natureza revoltada perante a tanta estupidez e a enorme ganância. Há quem chore enquanto outros arregaçam as mangas e tentam lutar contra o impossível. Uma criança passeia descalça agarrada a um boneco de olhos postos no nada. Tudo tem um tempo e pensa-se sempre a curto prazo. Esquecemos o que os acontecimentos, alguns recentes, nos têm lembrado.

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Os subúrbios de Valência sucumbiram. Não sabemos quantos morreram, quantos desapareceram. Alguns dos que sobreviveram e outros vindos a mando de gente cruel, fazem bolas de lama que arremessam a quem passa. É aqui que a luta política chega ao ponto mais baixo e triste. Perante uma catástrofe tamanha, a primeira coisa deveria ser ajudar com todos os meios e só depois buscar responsabilidades do acontecido. Eu, republicano confesso, aqui me curvo perante os reis e a sua coragem. Só que não chega. Pode acalmar e ajudar algumas pessoas e serve para os oportunistas do costume fazerem uma sondagem imediata que os põem nos píncaros.

Convém saber que tudo isto era previsível. Que a última vez que alguma coisa foi feita para evitar que acontecesse o afinal inevitável, foi nos anos 60/70 do século passado. Quantas barbaridades foram feitas e autorizadas depois disso?

A cidade da ciência e das artes de Calatrava está lá intacta. O centro de Valência, de onde foi desviado o rio também. São sempre os mais fracos, os mais débeis que sofrem as consequências.

Vamos marchar contra as intempéries do mundo.

***

Na madrugada do dia em que estou a escrever estas linhas, o homem laranja ganhou as eleições naquela que é propalada como a maior democracia do mundo. (Não será a Índia?)

O homem mais rico do mundo distribuiu dólares aos milhões e ficou mais rico. E vai ficar ainda mais com os novos negócios que já deve ter assinado. Eu sei que os lobbies fazem parte do jogo das eleições que querem trazer também para cá. Isso não quer dizer que eu esteja de acordo. Os valores que cada candidato gasta na campanha eleitoral é uma afronta a todo o ser comum.

Temos as guerras que não pararam, mas durante uns dias vão estar afastadas do dia a dia das notícias, agora vai ser América, América, América.

Estou expectante sobre o que vai acontecer no tal primeiro dia do mandato do novo presidente. Do curso das guerras. Do que vai acontecer com a NATO. E o comércio de armas, o maior negócio da América qual será a estratégia?

Quantos mais paraísos fiscais irão florescer? Hoje já muita gente ganhou dinheiro sem se levantar da cama.

Isto tem tudo para correr mal. Vamos esperar e vivendo a nossa vidinha. O tempo da mudança vai chegar.

«Aquela desgraça que eu vi na televisão, não desejo a ninguém. Que horror. É necessário ajudar aquela gente. Sobre a segunda parte não falo.»

Fala de Isaurinda.

«Eu sei. Vi-te as lágrimas nos olhos. Não entendo porque não falas da segunda parte.»

Respondo.

«És muito esperto. Estás a provocar-me. Sabes que não gosto dessas coisas.»

De novo Isaurinda e vai, um ar estranho.

 

Jorge C Ferreira Novembro/2024(455)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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3 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A lama e as laranjas”

  1. Filomena Geraldes

    Adorei a tua crónica embora tenhas
    andado a percorrer o lamaçal e o cheiro a ruínas, perdas e morte que sucedeu na vizinha Espanha.
    Valência foi o palco destes horrores
    que a deixaram horrorizada e terão marcado para todo o sempre. Ninguém esquece o medo em horas
    de agonia e aflição !
    Seguidamente foste aos EUA.
    Nesse dia, embora adoentada, vesti
    o luto. Um luto interior. De alma. De desassossego pelo futuro que nos espera.
    Despotismo, arrogância, xenofobia desrespeito, incongruência, falta de
    tolerância, desprezo pelas classes
    mais humildes e necessitadas,uma
    grande indiferença pelos graves pro-
    blemas que afetam o nosso planeta
    vão estar à frente do governo de um
    países mais influentes e poderosos do mundo.
    Devo aqui afirmar que voltei a recear pelas consequências deploráveis e mergulhadas nas negras brumas deste acontecimento que não compreendo nem aceito.
    Sendo também cidadã do mundo
    gostaria e sentir-me-ia muito mais segura se este caminhasse a passos largos e confiantes para a liberdade e democracia. Para a paz!
    Ao meu cronista de eleição agradeço o excelente texto que nos legou.

  2. Clara Figueiredo

    Que mundo vamos deixar aos nossos filhos e netos??

    Está é a preocupação maior …lideres corruptos e um povo que vai atrás do populismo enganador!

    Também eu fico com as lágrimas dentro do peito…

    Abraço e obrigada por tão maravilhosa reflexão.

  3. Claudina Silva

    Como adorei ler a tua crónica Poeta Jorge C. Ferreira, tanta dor no nosso Mundo 😪 que nos deixa o coração amargurado. Vamos ver o que o futuro nos reserva, temos de seguir em frente! Obrigada 🙏

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