Crónica de Jorge C Ferreira | A ânsia de Liberdade

Jorge C Ferreira

 

A ânsia de Liberdade
por Jorge C Ferreira

 

Fazer parecerem imensos os estreitos caminhos do meu País. Tão imensa era a nossa vontade de mudança. As ruas sinuosas, elegantes, a lembrarem corpos de mulheres. As travessas, as escadas e as escadinhas. O sobe e desce. A vida sempre no patamar mais baixo. Os jardins e os namorados. Em cada banco uma jura de amor. Quadras de amor. Nomes escritos. Corações esquecidos num verde cativante.

A nossa vontade de ir até aos espaços amplos, onde brilhava a liberdade. Fartos da cinzenta maneira de viver. Ai meu amor livre tão falado e tão ausente neste pobre país. A sociedade clerical que se veio a revelar suja, nojenta. As saudades do meu Avô, republicano e anticlerical. Uma polícia da vergonha. A nossa vergonha. Um ditador que demorou a cair da cadeira. Depois veio outro. Bem-falante. (As conversas em família.) Mas incapaz de dar a volta à nossa vida. Mudou o nome à polícia política e tudo continuou na mesma. Queríamos saborear o fruto proibido. Muitas vezes arriscávamos a liberdade. Algumas vezes éramos felizes. Momentos inolvidáveis.

Havia um pequeno clã que vagueava pela noite. Corriam todas as capelinhas do “pecado”. Eram sempre os mesmos que invariavelmente acabavam numa cave de culto para depois partirem para a solidão ou para a aventura. Terminavam a noite quando já o primeiro eléctrico tinha saída do seu esconderijo. Os carros operários iniciavam o seu vai e vem. O guarda-nocturno prestes a deixar o seu lugar. Já não fazia sentido bater palmas. Ninguém responderia.

O tabaco, o álcool e a vida desregrada. Coisas que mais tarde se pagam. Iniciáticas aventuras. Experimentar tudo o que a vida lhes oferecia. Os limites. As tais linhas vermelhas, hoje tão faladas, eram negras. Negro era o futuro que se nos apresentava, cheirava a guerra. Tinha o som da metralha. Amigos que regressavam em caixões. Mães vestidas de negro até ao fim de tudo. Um tempo em que as nossas ambições estavam amputadas. Uma ofensa à nossa inteligência.

Queríamos ir a Londres, Paris, Nova Iorque. Queríamos conhecer mundo. Queríamos saborear outras formas de viver. Tínhamos os Cauny de contrabando. O whisky de Sacavém. Algumas lojas onde apareciam coisas vindas de Londres. O novo. O arrojo. E íamos à bola. Íamos ver o nosso clube do coração. Chamávamos nomes ao árbitro que na altura vestia de preto. Depois discutíamos o que já não tinha solução à mesa do café. As bocas do costume. As provocações e alguns risos enjoados. Algumas zangas depressa sanadas.

O Zé do Garfo, imponente e armado de tridente lutava contra águas que em jactos perfeitos o pareciam incomodar. Uma água que não parava. Nós, no café, por detrás do vidro da imensa montra, assistíamos a tudo. Assim nos sentíamos seguros daquele gigante de pedra.

No passeio, em frente do café, dois mânfios jogavam ao par ou ímpar. Um jogo de azar. Os carros eram poucos. Tentava-se adivinhar se o último número da matrícula do próximo carro era par ou ímpar. Outro grupo jogava às moedas. As mãos atrás das costas, as moedas escolhidas, as mãos à frente. As apostas, as mãos abertas, a contagem e nova jogada. Dentro do café continuava a conversa à volta de uma bica.

Tempos que são memórias.

«Lá estás tu às voltas com essa vida que levavas. Devia ser linda, devia.»

Fala de Isaurinda.

«Foi tudo feito na altura certa. Na verdade, algumas aventuras exageradas. É como tudo na vida.»

Respondo.

«Sempre a mesma conversa, olha que a mim não me enganas.»

De novo Isaurinda e vai, o dedo a puxar o olho direito.

Jorge C Ferreira Janeiro/2023(383)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A ânsia de Liberdade”

  1. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge!
    Sonhos de liberdade; o que eu faria se mandasse nisto tudo!? Mas era, se mandasse. Havia uma ânsia de falar, mas por medo da sombra nada era dito. Havia a dúvida naquele que não falava e se mostrava atento a pequenos nadas como o respirar fundo com semblante carregado e olhos que disparavam chispas de fogo sem se ver.
    Eramos obrigados a ser cobardes para bem da nossa Liberdade.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Sei o que isso é. O medo da própria sombra para depois o vencer e arriscar. Liberdade sempre!

  2. Eulália Coutinho Pereira

    Que bela memória.. Quem viveu nesta geração, reconhece em cada descrição, Portugal cinzento, triste, escondido.
    Com as diferenças tão acentuados, realidades diferentes, os jovens ansiavam pela liberdade.
    Com a irreverência própria da juventude, assistimos extasiados á mudança.
    Sonhos, vitórias, derrotas, tudo o que fez parte de nós.
    Hoje olhamos para trás e não podemos deixar de sorrir com as memórias de uma vida.
    Obrigada Amigo por estas crónicas maravilhosa.
    Grande Abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Era uma vontade irreprimível. Ver o que sabíamos existir. Lutar pela Liberdade. As greves de um quarto de hora. As lutas sindicais. As noites perdidas. Uma vida quase dupla. Abraço

  3. Maria Luiza Caetano Caetano

    Tudo tão real. Tão bem descrito ao mais ínfimo pormenor. História bem contada, com alguma sensualidade, para alegrar um pouco o cinzento que se vivia. Motivo que, por vezes se ia longe demais. “ A ânsia de liberdade.” Que muitos parecem ter esquecido.
    “Tempos que são memórias.”
    Adorei, como sabe meu amigo a sua escrita é uma bela companhia. Muito obrigada. Abraço grande.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sempre generosa. Viver a vida que não nos deixavam viver. A rebeldia. Arriscar. Vencer o medo. Como é gratificante ler os seus comentários. Abraço

  4. Filomena Geraldes

    era tomar-lhe o travo.
    era atrever. intervir. sorver as horas. viver até ao limite.
    era tomar-lhe o corpo.
    era tocar. passar os dedos pela macieza da pele. instigar ao desejo. ultrapassar a noite.
    ver chegar a manhã. ébria de vadiagem.
    era tomar-lhe o odor.
    era conhecer o cheiro da morte. vindo de desmembrados corpos.
    de abusadas almas. perdidas na distância.
    era tomar-lhe o som.
    escutar as vozes e os burburinhos. os sonhos a fervilharem. viagens para tão longe quanto a liberdade pudesse alcançar.
    era tomar-lhe a visão.
    descrever arrojados cenários.
    indescritíveis.
    desenhar a geometria descritiva dos verbos. pintar de todas as cores o movimento de migração das gentes.
    era comungar a expressão inequívoca da juventude.
    era ter direito à vida !

    cronista .
    contigo voltamos a erigir a vontade,
    a força tenaz e a razão que nos fizeram acreditar que a liberdade
    era possível.
    talvez sejas tu. também.
    a memória de todos nós.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Não sei que te responder a tão belo poema/comentário. Acrescentar qualquer coisa seria escrevar. És brilhante. A minha imensa gratidão. Abraço.

  5. Fernanda Luís

    Amigo Jorge
    Memórias descritas de uma forma que nos chega ao coração.
    Reitero que gosto imenso do seu estilo, ora em prosa, ora em verso.
    Bem haja.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. É tão gratificante ler o que escreveu. Escrevemos para tocar no íntimo dos outros. Muito grato. Abraço

  6. Claudina silva

    Amei! Os tempos que vivemos…as memórias dos tempos que vivemos, o sabor da liberdade. Obrigada querido Amigo por esta partilha! Um abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina. Também eu Amo que estejas aqui presente. Vamos lutar sempre pela Liberdade. A minha gratidão. Abraço

  7. José Luís Outono

    Memórias de tempos de outros tempos, onde a balança do viver aferia sentires desregrados mas sequenciais de envolvimentos lutadores na juventude sempre irrequieta.
    Traço belo dos diários da nossa vida, em contos de encantos. Como te entendo!
    Grande abraço estimado amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís,Poeta. Sempre importante a tua voz neste espaço. Um espaço que queremos pleno da liberdade que nos faltou. Grato. Abraço

  8. Lénea Bispo

    Vidas desregradas, mas que não deixavam de ter as suas próprias regras. Era o convívio, a vida levada ao limite , a transgressão possível e inquestionável.
    No fundo, coisas que a Isaurinda não consegue perceber . .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea. Os limites que muitas vezes afrontavam os senhotes do poder. Pisar o risco. Tentar saltar o muro. Alcançar a Liberdade. Grato pela tua presença. Abraço.

      1. Lenea Bispo

        Isso mesmo! Só quem não sentiu isso, não será capaz de compreender… ❤️

        1. Ferreira Jorge C

          Abraço grande

  9. As memórias, o que nos movia e o que ainda nos move…
    Boa semana.
    Um abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Sofia. Que bom estares aqui. Uma alegria. Nunca iremos desistir da nossa utopia. A minha gratidão. Abraço

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