Uma Luta de Santos
Alice Vieira
Se há coisa que particularmente me tira do sério são os festejos de S. Valentim, no dia 14 de Fevereiro.
As lojas atulhadas de coraçõezinhos de todos os tamanhos e feitios, de feltro, cetim, seda, riscado, flanela, eu sei lá que mais, e pelo meio o branco dos ursinhos de peluche cheios de dísticos no mais puro português, “Be My Valentine!”, “Hug Me!”, e canecas com “ I Love You” em toda a volta.
Devo dizer que não tenho nada contra o santo, que esteja muito bem instalado lá no assento etéreo onde subiu é o que eu desejo. Contra os namorados ainda tenho menos, acho até que se deve namorar todos os dias, sem necessidade de patrono celestial.
O que me choca é a necessidade que tivemos de importar padroeiro estrangeiro. Desculpem, mas em matéria de patriotismo hagiológico, ninguém me leva a palma.
Quem tem um santo como o nosso Santo António, capaz de colar pés decepados, falar aos peixes, assentar praça como qualquer mortal, e livrar o pai da forca—isto para não falar das banais bilhas consertadas e da resposta masculina e pronta a jovens donzelas encalhadas—que necessidade tem de importar um estranho, a respeito do qual apenas se sabe que foi preso, açoitado e decapitado?
Com um santo como o nosso, a quem chamaram “glória de Portugal, honra de Espanha, tesouro de Itália, terror do Inferno, martelo perpétuo contra a heresia, e entre os santos por excelência milagroso “ (isto aprendi eu numa visita ao Museu Antoniano, feita em desagravo do santo), que vem cá fazer S. Valentim, não me dizem?
Se querem encontrar um dia para festejar os namorados, óptimo. Mas então que se escolha o 13 de Junho, com sardinhas assadas, fogueiras, cravos de papel, alcachofras e manjericos.
Em vez de ursinhos de peluche (mas que raio fazem os ursos aqui?) vendiam-se santinhos de todos os tamanhos, feitios e cores, bilhas partidas e por partir, e o mais que a imaginação dos artistas e do comércio descobrisse.
Porque a verdade é que no dia 14 de Fevereiro, juntamente com o S. Valentim, importa-se a papinha toda feita, modelos únicos para todos os países, a globalização no seu melhor, chapa um para todos os namorados, brancos, pretos ou amarelos, gordos, magros ou assim-assim, bem-dispostos ou maldispostos, dadivosos ou unhas de fome.
Vá lá, vamos trocar o 14 de Fevereiro pelo 13 de Junho. Vamos dar a Santo António o que lhe é devido.
Senão, quando os manjericos em Junho aparecerem para aí sem viço, e nenhuma alcachofra florir de madrugada—não se queixem. Até mesmo um santo, por muito santo, pode perder a paciência.