Crónica de Alice Vieira | Uma história verdadeira
UMA HISTÓRIA VERDADEIRA
Alice Vieira
Todos os dias somos atacados, através da net, pelos mais variados textos. E então agora, com as famigeradas fake news…é um ver se te avias.
Há sempre quem se encarregue de nos mandar histórias ou pequenos filmes com os mais estranhos acontecimentos, ou relatos de reuniões que nunca existiram, ou desastres que nunca aconteceram, ou petições a propósito de tudo e de nada, ou notícias que nos dizem ser rigorosamente verdadeiras mas que qualquer um, sem grande dificuldade, vê logo tratar-se de aldrabice.
Pois foi o que há dias me aconteceu.
Uma amiga mandou-me uma história que me pareceu tão absurda, mas tão absurda que eu tirei-me dos meus cuidados, interrompi o trabalho que estava a fazer e fui verificar se aquilo era mesmo verdade ou se era outra fake news que nos queriam impingir.
Fui ao Google, consultei sites e blogs, até consultei enciclopédias (quem é que hoje em dia ainda consulta enciclopédias???), falei com amigos—até não me restarem dúvidas: a história era mesmo verdadeira.
É a história de um menino chamado Mário que nasceu na cidade italiana de Verona em 1937, fruto de uma daquelas paixões fulminantes mas que não duram mais que uma noite… O pai era um militar italiano que cedo se separou da mãe, e nunca mais ninguém soube dele.
Entretanto os nazis chegam a Itália, prendem a mãe de Mário e mandam-na para um campo de concentração.
Mário é uma criança de 4 anos.
Sem família, sem amigos.
Vive na rua, dorme em vãos de escada, e sobrevive do que consegue roubar. Junta-se a gangs de crianças que, tal como ele, vivem nas ruas. Roubam lojas e pessoas, usam facas, atacam quem passa.
Mário vive nas ruas dos 4 aos 8 anos.
Entretanto a guerra acaba.
Finalmente a assistência social repara naquele bando de crianças e leva-as para um hospital. O estado de subnutrição de todos é tão grande que muitos já não resistem.
Mas Mário é forte, leva muito tempo a recuperar, mas recupera.
E no hospital acaba por encontrar a mãe, que para lá fora levada depois de a retirarem do campo de concentração.
Mas a mãe não vai resistir, e uns parentes afastados que vivem nos Estados Unidos chegam a Verona para levarem Mário com eles.
Mário entra pela primeira vez numa escola aos 11 anos.
Aos 11 anos não sabe ler, não sabe escrever, não sabe uma palavra de inglês, não sabe viver com os outros.
E só então também começa a perceber que há leis e regras a cumprir quando se vive no meio de outras pessoas.
Mas tem uma enorme fúria de aprender.
A partir de agora, abrevio a história.
Mário chama-se, de seu nome completo, Mário Capecchi.
Tem actualmente 82 anos—e um dos sorrisos mais luminosos que já vi.
Fala muitas vezes da sua infância, em conferências e textos que lhe pedem–mas sem qualquer tipo de azedume. Foi assim, foi assim.
E, em 2007, ganhou o Prémio Nobel da Medicina.
E pronto, aí fica esta história. Verdadeira.
Quando estivermos naqueles dias em que nos sentimos os mais infelizes e incompreendidos do mundo – lembremo-nos dela.
E, já agora, seria bom contá-la também às nossas crianças.
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira.