Uma família feliz
Por Alice Vieira
O Sr. João Tavares é taxista.
Apanhei-o aqui perto de casa e, antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse, pergunta-me
“Conhece o Costa?”
Estava eu a pensar em quantos Costas conhecia e já ele continuava:
“Preciso de lhe falar”
Foi então que percebi que ele se referia ao Primeiro Ministro.
Já tenho dito muitas vezes que o que me custa mais no confinamento é não poder beijar e abraçar os meus filhos e os meus netos.
Mas logo, logo a seguir é terem-se acabado as idas às escolas por esse mundo fora. (E não me digam que faça por zoom, porque não tem nada a ver…)
Os meus amigos estão sempre a dizer-me que devia fazer um livro sobre isso, eu fui sempre dizendo que não , mas se calhar até nem seria má ideia…
Tenho quase a certeza de que os países a que mais escolas fui foram a Alemanha (quando comecei a lá ir, ainda Bonn era a capital…) e a Suíça (até hoje a minha editora em língua francesa é de lá, “La Joie de Lire”)
E lembro-me sempre de uma história que lá me aconteceu—mas que não tem nada a ver com livros.
Não me lembro em que cidade eu estava, mas já tinha acabado a sessão, quando a professora me convidou para ir almoçar a casa dela, e que depois me levaria para a outra cidade onde eu tinha de estar.
Uma moradia muito bonita, no meio de um grande jardim. Aquilo começava bem.
Entrámos, ela gritou “já cá estou” e fomos de seguida para a casa de jantar. Sentada ao cimo da mesa uma velhota encantadora, sempre de sorriso nos lábios, a querer saber coisas de mim, olhava para mim e sorria, olhava para mim e sorria.
Do alto das escadas desceram então dois jovens, filhos da professora, também uma simpatia, cumprimentaram-me e ali ficámos naquela conversa mole de gente civilizada, mas que não se conhece bem.
Último da história—o marido.
Para não fugir à regra, uma simpatia também.
A mulher ia levantar-se para ir buscar a comida à cozinha e logo ele, ”nem penses, estás farta de trabalhar, eu trato disso tudo, deixa-te estar sossegada.” Aí tive vontade de gravar aquilo para que todos os maridos portugueses ouvissem e fizessem o mesmo.
Foi um almoço muito agradável e, se a professora não me lembrasse das horas se calhar ainda tínhamos lá ficado a tarde toda.
Mas a outra escola esperava-me, por isso era preciso agradecer muito a todos, sair de casa e entrar no carro.
Já na estrada, não me contive.
“Mas que família tão simpática que tem.. A sua mãe então, é mesmo um amor… Sempre sorridente…”
Não a senti muito entusiasmada.
“É minha sogra…E sabe por que é que ela já estava sentada à mesa e nem se levantou? E porque está sempre a sorrir e de olhos piscos? É porque a esta hora já está completamente perdida de bêbada e nem se consegue ter de pé…”
Ia-me engasgando e achei melhor mudar de assunto…
“Os seus filhos são muito educados…”
“Pois são. Há seis meses que não vinham a casa nem davam notícias. Ia eu a sair hoje para a escola quando esbarro com eles à porta. “Vá lá, mas não te demores muito, que a gente precisa de dinheiro para se pôr logo a andar.” E a esta hora já se devem ter feito à estrada.”
Calei-me. Mas para a animar um bocado disse:
“Mas olhe, tem o seu marido para lhe dar apoio, já não é mau…”
Ela sorriu.
“Pois…Mas estamos em processo de divórcio litigioso, e quando temos gente cá em casa ele faz sempre aquelas fitas de me ajudar que é para depois as pessoas irem testemunhar a favor dele…”
Foi a partir desse dia que eu nunca mais fiz juízos só pela aparência daquilo que via.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira