Crónica de Alice Vieira | Um grande dilema

Alice Vieira

 

Um grande dilema
Por Alice Vieira

 

Todos os meus amigos sabem que, desde há algum tempo, assentei arraiais na Ericeira. O ar do mar faz-­me muito bem. Mas antes de cá viver,  sempre cá passei  grandes temporadas. Já vivi na Rua de Baixo, já vivi no Largo da Anadia, etc, etc… Ou seja : praticamente todos me conhecem e eu conheço toda a gente.

Um desses meus grandes amigos, de há muitos anos, chama-se Mo. Deve ter mais nomes, claro,  mas é do Bangladesh e esse é o único nome dele que eu sei.

Está há muitos anos à frente de uma tabacaria no Centro Comercial da Ericeira, onde compro muitos postais. E ele ainda insiste em me dar mais dois para lá daqueles que eu compro, ou uma esferográfica, e fica muito ofendido se eu digo que não quero.

Gosta muito de mim e se entra algum estrangeiro na loja ele diz logo que eu sou uma grande escritora e coisas assim. E foi ele que descobriu que o meu livro “Graças e Desgraças da Corte de El-Rei Tadinho” estava traduzido em bengali. Leu-o e fartou-se de rir.

Há dias disse-me que a namorada—também do Bangladesh—ia chegar, e convidava-me para um caril em sua casa.

Entretanto tive de ir a Lisboa e dias depois uma amiga telefonava-me a dizer que ele se tinha suicidado. A namorada trocara-o por outro, ele fechou a loja e suicidou-se lá dentro.

Eu sou de lágrima difícil—mas o que eu chorei não tem explicação.

Quando regressei à Ericeira até evitava passar diante da loja dele, para evitar tristes recordações.

Um amigo notou isso e estranhou.

“Por que é que chegas aqui e viras para o outro lado do passeio?”

Contei-lhe e, para meu grande espanto, ele desatou a rir que parecia parvo.

“Suicidou-se?? Olha, fica sabendo que ele está bem melhor que nós!”

Eu nem queria  acreditar. Chamei-lhe parvo, doido, etc., etc….

Então ele contou-me que quando a namorada lhe disse que vinha cá, ele pensou, pensou e tornou a pensar há quantos anos não ia ao seu país– e  de repente sentiu imensas saudades Como podia  ter estado tantos anos sem lá ir? Então ligou à namorada e disse-lhe que não viesse, porque ele ia lá ter com ela.

E foi. Disse que não queria avisar ninguém  (nem a mim, a sua melhor amiga de há tantos anos??)-a naõ ser o dono da loja, evidentemente—e desandou para o Bangladesh onde, ao que consta, está muito feliz.

O meu amigo ainda acrescentou que quem se tinha suicidado era um velhote de outra loja do centro comercial. Coitado do senhor, evidentemente, mas não o conhecia de lado nenhum

E eu agora estou aqui num dilema.  Um grande dilema mesmo

Quando o Mo voltar–se é que volta…– vou enchê-lo de beijos e abraços, ou dou-lhe uma sova de o fazer cair ao chão?

Palavra que estou muito, mas mesmo muito indecisa.

Se alguém me puder ajudar, agradeço.


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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