Um conto de Natal
Por Alice Vieira
Desembrulha o presente que o marido lhe deu e fica muito tempo a olhar para ele, sem saber se há-de rir se há-de chorar.
–Que raio de prenda – murmura a filha—Um papel velho numa moldura… Mas quem é que emoldura papéis velhos?
Ela não responde.
E olha para aquele papel velho, com os nomes escritos todos em maiúsculas,e no fim de tudo,
“Madrinha Teresa”
e de repente a voz da mãe há 40 anos gritando
“claro, esqueceste-te da Madrinha Teresa, pois olha que sem ela não eras nada, ouviste? Nada! Mas tu tens sempre muito em que pensar, já para não falar nas asneiras que andas a fazer, que eu bem sei, julgas que sou burra mas não sou!
E ela sentindo-se a sufocar naquela casa, com as paredes cheias de quadros de gôndolas e açudes e meninos de lágrima a escorrer pela cara, onde paira a sombra da Madrinha Teresa.
E agora era tempo de Natal, e ela tinha comprado prendas para toda a gente da lista que escrevera a mando da mãe.
Para todos — menos para a Madrinha Teresa, mas apenas porque estava muito cansada.
Ela não consegue tirar os olhos do papel e com ele regressa a voz da mãe, e ela a tentar não responder mas a mãe tinha a suprema arte de saber atingir nos pontos onde tudo doía mais, sobretudo desde que descobrira que ela se encontrava com o Carlos
“uma desavergonhada, é o que tu és”
as palavras da mãe a rasgarem o fundo do seu coração, e para ver se a mãe se calava ela disse
“por que é que pendurou este quadro, mãe, é tão feio”
e de repente a mãe a apontar para o fim do corredor
“se não gostas tens bom remédio, a porta é ali”
Olha mais uma vez para o papel, e por onde terá andado este papel durante estes anos todos, e onde terá o marido encontrá-lo? Este papel que lhe traz a voz da mãe e depois a dela
“se é assim que quer”
ela abrindo a porta e saindo para a rua sem mais nada, mais nada a não ser aquela lista idiota cheia de nomes de pessoas para quem comprou prendas porque era tempo de natal e assim a mãe lhe tinha ordenado que fizesse.
Olha mais uma vez para o papel, agora numa moldura, e só se lembra de o ter nas mãos e de não saber o que fazer, nem para onde ir —mas com a certeza absoluta de que, naquele natal, era ela que iria renascer.
— Lembravas-te desse papel?
Estremeceu, não tinha dado pela entrada do marido na sala.
Sorriu e abriu os olhos de espanto:
— Tu guardaste isto?!
Ele encolheu os ombros.
— Nem me lembrava. Abri uma gaveta e lá estava, no meio de papelada velha…
— Há quantos anos…
— É verdade…Há quantos anos… Estou a ver-te à entrada de casa a olhares para mim sem saberes o que fazer da tua vida…Há quantos anos…Achei graça, só isso. Deita-o fora, se quiseres.
— Diga lá, mãe, o que é isto?—a voz da filha a trazê-la à realidade.
Ela olha para o marido, que lhe sorri, e ouve-se, há quarenta anos, a perguntar-lhe:
–Posso ficar contigo?
A filha continua a olhar para ela.
–Isto—responde ela, finalmente,—é a prenda de Natal mais bonita que o teu pai alguma vez me deu.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira