Só porque hoje me lembrei dele
Por Alice Vieira
Há datas que festejo sempre. Mesmo quando as pessoas já cá não estão, mesmo se as festejo só para mim.
O Ruy Belo é uma dessas pessoas. Faria 88 anos no final deste mês. E penso quase todos os dias nele, sobretudo agora, que tem morrido tanta gente… Não só por ter sido o meu primeiro namorado, mas pelo muito que aprendi com ele até ao fim da sua curtíssima vida (morreu com 45 anos)
Conheci-o em 1961, quando ambos entrámos para a Faculdade de Letras de Lisboa.
Eu era uma jovem ainda a cheirar à infância do liceu; ele, dez anos mais velho, já tinha uma série de cursos no currículo, um doutoramento feito em Roma, um livro de poemas publicado.
A princípio fazia-me muita confusão que uma pessoa como ele ainda insistisse em estudar mais, e se tivesse de novo matriculado numa faculdade, e andasse ali junto dos caloiros (e todos juntos estaríamos quando, pouco tempo depois, rebentou a greve académica, que nos uniu ainda mais.)
Mas naquele tempo, a nossa faculdade fazia-se muito mais no bar de Letras, onde a Menina Manuela tirava bicas, e onde as mesas se enchiam de gente que falava, discutia, acreditava que era possível fazer do país um lugar onde – como ele dizia pelo meio desse primeiro livro – “ um dia haverá barcos e seremos livres”
Às vezes, de repente, o Ruy exclamava:
“Tenho de ir para casa”.
E levantava-se da mesa e saía.
E eu sabia que era um poema que estava a chegar. Nunca conheci nenhum poeta a quem a inspiração chegasse assim.
Mas o Ruy era também a pessoa mais desorientada que alguma vez conheci na vida…
Nunca me hei-de esquecer do dia em que ele insistiu em ir buscar-me a casa para irmos…? À distância destes anos todos não me lembro exatamente onde iríamos, mas possivelmente a uma exposição de pintura na Galeria 111, que era o poiso de todos nós. Mas lembro-me de ter dito “eu levo o meu carro” ( o meu carro era, na altura, o carro onde se amontoava toda a gente, “que saudades do tempo em que, para nós, “mini” era o teu carro e não uma cerveja”, dizia há dias o Jorge Silva Melo, nosso comum amigo…), e de ele ter respondido “desta vez vamos no meu”.
Eu vivia então na Av. António Augusto de Aguiar – e até hoje me lembro do pânico que senti quando o Ruy, metendo a primeira para arrancar, começa a subir a Av. Fontes Pereira de Melo—em sentido contrário.
“Ó Ruy, não é por este lado!”, gritava eu, e os carros que vinham contra nós a buzinarem feitos doidos, e ele “deixa estar que isto é rápido!”
Era nos anos 60, claro. Se fosse hoje, com o trânsito de hoje, aquele teria sido o nosso último dia de vida.
Depois o curso acabou, o namoro acabou, as nossas vidas levaram rumos diferentes, mas nunca deixei de estar em contacto com ele, e às vezes aparecia cá por casa, ou vinha jantar (quase sempre em dia diferente daquele que tinha sido combinado…).
Lembro-me de como me indignei quando não o deixaram entrar como professor na faculdade, e ele teve de ir dar aulas num curso noturno de uma escola do então Ensino Técnico, no Cacém.
Lembro-me de ouvir a sua voz magoada quando me ligava: “à noite, quando chego a casa, custa-me tanto subir as escadas…Às vezes tenho de me sentar nos degraus, para ter forças para continuar”
Hoje, enquanto recordo tudo isto, tenho na minha frente um postal da Fonte de Neptuno, em Madrid, que ele me escreveu, na sua letra tremida quando, nos anos 70, lá era leitor.
“O meu quarto na Casa do Brasil é o nº 15-A. “ E enchia o postal todo só com uma palavra: “escreve-me, escreve-me, escreve-me…”
Às vezes, quando estou a escrever postais para amigos espalhados pelo mundo inteiro, também tenho muita vontade de escrever um para ele, daqueles com fontes e estátuas, como ele gostava.
Mas agora para onde é que eu lho mandava?
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira