Crónica de Alice Vieira | Quem é que ainda fala português?

 

Quem é que ainda fala português?
Por Alice Vieira

 

Aqui há dias li um artigo num jornal, intitulado “Haverá alguém que ainda fale português em Portugal?”

Isto até podia ser uma palermice se não fosse, infelizmente, verdadeiro.

Anda por aí o pessoal muito preocupado com o acordo ortográfico, ai que horror, agora não se põe “c” nem “p” quando eles não se pronunciam, ai meu Deus, e não se põe acento no ”para”—e depois fecham os olhos (ou até são eles próprios a fazê-lo) aos erros, ao português mal falado, às expressões inglesas que se usam a propósito de tudo e de nada (“e não sabes qual é o budget?” perguntava uma rapariga há dias numa mesa ao pé da minha na esplanada da praia)

Lembro-me de um dia ter ido a uma escola no norte e, antes de entrarmos, a professora começar a falar no novo acordo e nas desgraças que ele trazia consigo.

Para não a deixar a falar sozinha, lá lhe fui dizendo que isso era uma coisa que não me preocupava muito, havia outras coisas bem mais importantes mas, para lhe fazer o jeito, lá lhe disse que, no acordo, aquilo que ainda me fazia uma certa confusão era terem tirado o hífen ao verbo haver.

“Ai, nem me fale!”, exclamou ela,” terem tirado o hífen ao hádem e ao hádes também é uma coisa que não me cabe na cabeça.”

Ri-me, evidentemente, porque pensei que ela estava a brincar comigo. Só quando ela olha para o relógio e me diz “vamos andando que os miúdos já hádem estar na sala” é que eu percebi que ela estava a falar a sério.

E para além de as pessoas falarem muito mal, não têm conta as expressões estrangeiras… Havia um restaurante  na Ericeira que toda a gente conhecia, já fazia parte da terra há anos. Era o “Petiskas”—nome com certa graça.

A dona já estava um bocado velhota e cansada, anos e anos a cozinhar, e decidiu vender. Até aqui, tudo bem, no caso dela eu teria feito o mesmo. O restaurante foi para obras, esteve fechado não sei quantos dias, até que finalmente reabriu. Passei por lá, olhei lá para dentro e fiquei muito contente porque não tinham alterado nada, estava exactamente na mesma. Mas o contentamento durou pouco. Quando saí e olhei para a tabuleta cá fora, com o nome do restaurante, descobri que ele agora se chama ”Sweet, Salt and Pepper”!! Bonito, não é? Eu costumava estar lá sempre caída, era lá que festejava o dia dos meus anos mas, enquanto o restaurante continuar com este nome, não volto a pôr lá os pés.

Palavra de jagoza!  (Já agora, como é que isto se dirá em inglês??)


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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