Crónica de Alice Vieira | Quando tanto se fala de professores

[sg_popup id=”24045″ event=”onLoad”][/sg_popup]

QUANDO TANTO SE FALA DE PROFESSORES
Alice Vieira

 

O ensino vive tempos bastante conturbados. Basta ver a televisão, ler os jornais.

E, nestes tempos conturbados, lembro-me muitas vezes dela.

Dela e de nós, há 60 anos.

Não me lembro do nome, seria Helena?, não garanto–mas nunca hei-de esquecer a sua voz mansa, o cabelo todo branco (embora ainda fosse nova), o casaco comprido castanho, e a malinha enfiada no braço.

Tinha vindo de outra escola, e também não aqueceu ali o lugar: eram tempos complicados, e pensar pela própria cabeça ( e—pior do que isso—pôr os alunos a pensar pela deles)  pagava-se então muito caro.

Nunca soubemos o que lhe aconteceu.

Como na cantiga do Sérgio Godinho, “às duas por três chegou/ às duas por três partiu”.

A primeira vez que entrou na nossa sala de aula, olhou para todas como se não soubesse o que estava ali a fazer.

Ou o que havia de nos dizer.

Trinta raparigas a olhar para ela ;  ela a olhar para 30 raparigas.

Em silêncio.

Depois abriu a malinha.

Da malinha tirou um livro.

Um livro muito pequeno, de uma colecção chamada “Miniatura”.

Voltou a olhar para nós, abriu o livro e começou a ler.

Era uma história estranha, que se passava numa terra que nem sabíamos onde ficava, uma história onde não havia mulheres a apaixonarem-se por homens que não lhes ligavam nenhuma, ou exactamente o contrário, como nos romances da “Biblioteca Das Raparigas”, que todas nós líamos.

Era a história de uma terra aparentemente normal ,onde fazia sempre muito calor, e onde, de repente, começavam a aparecer ratos mortos, muitos ratos mortos.

E, depois dos ratos mortos, começaram a morrer pessoas, muitas pessoas, até que alguém ordenou que a cidade fosse fechada.

Foi assim que nós, meninas de 15 anos, num liceu lisboeta no Portugal salazarento de finais dos anos 50, nos apaixonámos todas pela “Peste” de Camus.

A seguir à primeira leitura, ela explicou-nos quem era o autor, que terra estranha era aquela Oran onde tudo se passava, e disse-nos que estivéssemos sempre com muita atenção, porque às vezes as histórias tinham de ser entendidas para além das palavras que as contavam.

Nos outros dias tudo se processava da mesma maneira: ela entrava, olhava para nós, sorria, abria a malinha, da malinha tirava o livro,

“ora vamos lá ver onde ficámos da outra vez”

e lia.

Lia.

Sem floreados, sem “powerpoints”.

Lia.

A sua voz, e mais nada.

Cinquenta minutos depois, a campainha tocava, ela fechava o livro, metia o livro na malinha, pendurava a malinha no braço, e saía.

E nós saíamos da sala meio atordoadas, com a sensação de sermos muito mais adultas.

E, no recreio a seguir, nunca sentíamos vontade de falar.

Não, evidentemente que “A Peste” não fazia parte do programa!

E as aulas que ela nos dava não eram de português, nem de francês, nem de outra disciplina curricular.

Acontecia apenas que tínhamos duas professoras que faltavam muito.

E ela vinha, pura e simplesmente, dar-nos aulas de substituição.

Não sei se hoje ainda existem essas aulas.

Mas de certeza que nós não teríamos começado o olhar o mundo como passámos a olhar se ela não tivesse vindo ao nosso encontro.

Por isso não aqueceu o lugar.

Mas a verdade é que, quando ouço falar de professores, dos problemas dos professores , ou  quando escuto as minhas amigas professoras—é sempre dela que me lembro.

 

Partilhe o Artigo

Leia também