Quando eles nos deixam
Por Alice Vieira
Entro na sala, e é como se tudo faltasse só porque ele falta.
Ainda por cima em confinamento tudo custa mais.
Desde anteontem que ando para aqui sem saber o que fazer, abro janelas, olho lá para fora, fecho janelas, sento-me no sofá, olho em redor, como se isso chegasse para o fazer voltar.
Foi a primeira vez que passou a noite fora.
E sem aviso.
Ligo às amigas, na tentativa de um consolo, para isso é que se inventaram as amigas.
Riem-se de mim.
“Cinco anos, dizes tu? Aguentou cinco anos? Meu Deus, isso é uma eternidade! O meu não aguentou nem dois!
“E o meu? Ao fim de um ano, acabou!”
Estremeço.
Nem me passa pela cabeça que ele não vai voltar.
Elas voltam a rir.
“Até pode ser que volte, não digo que não, mas vais ver… vem mudado, com uma linguagem diferente… Nunca mais será o mesmo…“
Desligo o telefone.
A minha filha também não me ajuda:
“Ó mãe, não penses mais nisso, arranja mas é um novo…
“Tu não me digas uma coisa dessas! Ele vai voltar”
“Isso é o que dizem todos”
Tento ocupar o tempo—mas sem ele é impossível.
Sem ele não consigo ouvir música.
Nem ler um jornal.
Nem partilhar histórias.
De cada vez que olhava para ele, tinha a certeza de que havia de viver o resto da minha vida ao seu lado.
A minha filha ria-se, porque esta tinha sido uma relação assumida muito tarde.
–Quem te viu e quem te vê…–murmurava ela— Ao princípio, quando toda a gente te falava nele, zangavas-te, juravas que nunca iria entrar na tua vida…E agora, de repente, não podes passar sem ele…
Mas, de repente, —oh felicidade!—ouço a campainha da porta, é ele que volta, eu tinha a certeza que ele ia voltar.
Reconheço-o imediatamente, ainda antes de abrir a porta do elevador, e a minha vida volta a ter razão de ser, enquanto oiço a voz do homem que , sem se aproximar muito de mim por causa do confinamento, me diz:
–Prontinho, aí o tem de volta, formatei-lhe o software, instalei-lhe mais uns programas, um teclado novo, mais um anti-vírus profissional, e está com três gigas. Com as deslocações, são 180 euros, mais IVA.”
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira