Por caridade
Por Alice Vieira
“Se não fosse a caridade da família que as acolheu, nem sei o que teria sido delas” — ouvi eu esta manhã na esplanada da praia. E todo o grupo estava de acordo e acenava a cabeça. Eu também devia ter acenado, elas estavam cheias de razão, eu até conheço a miúda de quem elas falavam.
Mas não consegui.
Nunca consigo.
E acho que se souberem porquê me vão dar razão.
As 4ª feiras eram o dia em que as velhas tias que me criaram praticavam a caridade.
De manhã tocava à porta da cozinha “a pobrezinha das senhoras”. Ficava sentada nas escadas enquanto as criadas da casa lhe davam um prato de sopa. Depois agradecia muito e ia-se embora, até voltar de novo na 4ª feira seguinte.
À tarde chegavam as visitas, e então as minhas tias mandavam-me buscar, para me mostrarem às visitas como um extraordinário troféu —e diziam, “a mãe não a quis e nós é que a estamos a criar…Uma caridade que estamos a fazer. “
Depois mandavam-me sair da sala e a caridade acabava ali. E, mesmo quando não havia visitas, faziam sempre questão de me repetir que não tinham nenhuma obrigação de me criar e que, se eu estava ali, era por caridade.
Eu aprendi a ler sozinha, muito pequena, e adorava aquelas histórias de meninos enjeitados, abandonados à porta de senhores muito ricos que ficavam com eles e os amavam de paixão.
Um dia, nessas apresentações às visitas, uma delas teve a ideia de me perguntar o que é que eu queria ser quando fosse grande, e eu respondi “enjeitada” — o que evidentemente me atirou para o quarto de castigo, sem jantar — depois de as visitas e as tias, quase em coro, me chamarem ingrata por não ver que se eu estava ali era por caridade.
As tias eram muito velhas, e às vezes morriam e lá passava eu para outras. Sempre por caridade.
Nunca me sai da cabeça um dia em que uma delas tinha morrido e fomos todos para uma reunião em casa de outra, para se discutir com quem é que eu ficava. E nenhuma me queria. Porque, diziam “chatices já eu tenho que cheguem” — rematando aquelas com quem eu já tinha estado: “caridade tem limites”.
E eu a ouvi-las, ao fundo da sala, pensando apenas onde é que eu iria dormir nessa noite…
E isso doía tanto.
Por isso, desculpem lá, mas quando ouço falar de caridade, é logo disto que me lembro
Alice Vieira
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira