Crónica de Alice Vieira | Pessoas Assim

Alice Vieira

Pessoas Assim
Por Alice Vieira

 

Desde criança que passo grandes temporadas na Ericeira.

Há cinco anos que vivo cá e só muito raramente de cá saio.

Por isso nunca pensei que me pudesse acontecer o que aconteceu.

Estava eu de manhã na esplanada da praia do sul, como sempre,e, também como sempre, a ler o “Correio da Manhã”, que é o jornal que a praia recebe logo de manhãzinha. Nesse dia também trazia uma revista. Olho para a capa e tenho a vaga sensação de que já vi aquele homem que lá aparece.

Não pensei muito nisso, e começo a ler a entrevista com ele, que ocupa uma data de páginas  da revista.

É uma grande entrevista, feita pela jornalista Marta Martins Silva.

Ia caindo para o lado.

Porque o simpático Sr. Cardoso, que as vezes por aqui passa, é… segurem-se bem!… o último inspector da PIDE vivo.

Mas até podia ter sido da PIDE e agora, 50 anos depois, mostrar-se arrependido ou qualquer coisa no género.

Mas não.

Tem as paredes da casa todas cobertas com retratos de Salazar que, evidentemente, foi o melhor homem que ele conheceu, Marcelo Caetano foi um fraco e Spínola um vaidoso. O que era preciso para se ser admitido na Pide? Nenhum curso, mas sim“ aquele dom, aquela habilidade, um instinto, um jeito”. E para fazer falar os presos? “Ah, para isso fazíamos umas brincadeiras, mas nada de torturas, isso nunca”. Conta que às vezes, para ver se eles contavam mais depressa, deitavam fogo a um papel e punham-no em cima da cabeça do preso que ficava muito aflito. “ Só lhe ardiam uns cabelos, ora diga-me lá se isto era tortura? Claro que não! E choques eléctricos? Não era nada disso, era apenas uma leve comichão na pele.”

Também trabalhou em África e na Guiné, mas não gostou muito. “Só havia uma coisa boa: não precisávamos de lhes dar comida porque eles gostavam muito da comida que lá arranjavam: caracóis e larvas”

E fico-me por aqui — embora a entrevista continue E só tenho uma pergunta: como é que ainda existem pessoas assim?!


Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia, sendo considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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