Palavra puxa palavra
Por Alice Vieira
De vez em quando ouço uma palavra e essa palavra leva-me logo a recordar coisas muito antigas.
Por exemplo, aqui há dias uma amiga, bastante mais jovem do que eu, estava a dizer-me que tinha ralhado com a filha porque esta insistia em tomar banhos de imersão em água quase a ferver.
“Olha”, digo eu, “foi assim que morreu a Maria Montez!”
Ela esbugalhou os olhos: “Quem??”
Eu desatei a rir, quem é que hoje sabe quem foi a Maria Montez!
Em criança eu também tinha esse vício e um dia a minha tia levou-me ao médico e contou-lhe. Ele zangou-se muito comigo e disse-me,“ não te lembras que foi assim que morreu a Maria Montez?!”. E eu fiquei tão aterrorizada que, até hoje, nunca mais tomei banho em água muito quente.
Quando eu era miúda a Maria Montez era uma actriz, nascida na República Dominicana, muito popular no mundo inteiro. E quando ela morre, com cerca de 30 anos, afogada na banheira com um ataque cardíaco, foi um desgosto a nível mundial.
Mas há muitas outras expressões que me fazem também rir muito por aquilo que me trazem à memória. Há dias falava-se na televisão de qualquer coisa que ia acontecer na Mata Mourisca e eu desatei a rir. Porque me lembro sempre de uma redacção de um miúdo sobre os animais que dão leite e ele, depois de citar a ovelha, a vaca, a cabra, terminava assim: “E o Senhor Prior da Mata Mourisca também dá leite –mas em pó”.
Ou então quando ouço falar em Boticas. Tudo porque um dia vinha uma grande reportagem no DN sobre esse lugar—com uma fotografia a ilustrar. A legenda era “um típico pastor de Boticas”. Mas o que lá vinha era uma fotografia do Elvis Presley.
E aquelas comparações que hoje o politicamente correcto nunca deixaria dizer:” carregado como o preto da Casa Africana”. Era um boneco de madeira, preto, carregado de embrulhos que era suposto ir entregar, colocado à porta de um grande armazém chamado Casa Africana. Claro que já nada disso existe agora—mas a expressão ainda corre
E gralhas, nem se fala.
Numa altura em que tinha havido qualquer coisa de muito grave e toda a gente queria contribuir com dinheiro, o DN também escrevia que o Senhor General Ramalho Eanes já afirmara desejar contribuir com o seu pequeno “matrimónio” (era “património”, claro).
E aselhices de um velho colega nosso, perito nelas: “Um morto alvejado quando fugia”
E etc, etc, etc
Mas hoje é tudo tão certinho que as notícias perderam a graça toda.
Alice Vieira
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira