Ora então parece que andamos a brincar
Por Alice Vieira
Ora então parece que andamos a brincar.
Pode haver grupos de 20 pessoas—e vamos logo fazer festarolas com mil.
Temos de guardar distância entre nós—vamos todos bailar e andar aos abraços.
O vírus afecta toda a gente –ora, são só os velhotes.
Aqui perto de onde eu moro, em Lisboa, há uma rua com muitos restaurantes e esplanadas—e é vê-los à noite, aos magotes, copo na mão—e, evidentemente, sem máscara.
E assim tivemos de regredir, de não poder fazer aquilo que já fazíamos, e os cafés têm agora de fechar mais cedo, e já só podem estar 10 pessoas juntas porque os meninos sentem-se donos do mundo. E a polícia tem de estar mais vigilante e passar multas.
Se querem saber, qual multa qual carapuça—aquilo era cadeia com eles para ver se aprendiam. Porque não é o mal que podem fazer a si próprios–mas o mal que podem fazer aos outros.
Mas pronto, falemos de outras coisas.
Então é agora, neste momento em que toda a gente quer salvar a sua vidinha (menos os malucos, claro..,) que se recomeça a falar da despenalização da eutanásia?
Claro que cada um é livre de proceder consigo como quiser. Mas custa-me muito esta discussão. Eu sou contra, mas isso sou eu , é a minha opinião pessoal, os outros saberão de si.
Lembro-me sempre de um amigo músico ,com uma doença incurável, que reuniu a família e os amigos e se despediu, e foi a um país estrangeiro onde a eutanásia estava legalizada.
E não teve coragem, e regressou—e ainda viveu uns bons anos.
E há casos diferentes. Contam-me que a minha avó materna—que eu já não conheci– estava muito doente, só dizia que queria morrer (não falava em eutanásia porque, coitadinha, nem devia saber o que isso era…)– e morreu. Meses depois apareciam os antibióticos e ela tinha-se salvo.
Nós nunca sabemos o que nos espera. E bem lá no fundo, ninguém quer morrer.
Recordo aqui o poeta Afonso Duarte—tão esquecido…- que enfrentou a solidão (poucos amigos se lembraram dele depois de ele ter sido expulso do ensino por Salazar), que enfrentou a doença que cedo o atacou (ficou paraplégico) –e nunca desistiu. E que já à beira da morte ainda dizia “eu posso lá morrer, terra florida”, e escrevia:
Não sou um velho vencido/ e mesmo à beira da morte/ quero erguer o braço forte/ da razão de ter vivido.”
Já para não falar do conhecidíssimo verso de Pessoa: “se te queres matar, por que não te queres matar?”
E pronto. Na próxima crónica prometo ser mais alegre..
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira