O vidro
Por Alice Vieira
Passa semanalmente na RTP-2 um programa de entrevistas chamado “Mulheres da Resistência”—ou seja, mulheres que se bateram pela liberdade. As entrevistas são feitas pela Manuela Cruzeiro—e a desta semana era com a Aida Magro. Fui muito amiga do José Magro (então seu marido), que me escrevia tantas cartas da prisão de Peniche—ele ,que estava preso há anos e anos, e era torturado– preocupado com a minha saúde, e se tinha ido ao médico…Eu adorava o Zé Magro.
Foi então que me lembrei de um texto que tinha escrito em 1996 ,para o “Diário de Notícias”, depois de uma ida ao Museu da Peniche. E apeteceu-me publicá-lo hoje aqui.
Aí vai.
O VIDRO
Da última vez que eu tinha estado em Peniche, havia um vidro entre as minhas mãos e as mãos do Zé Magro. A entrada no forte tinha sido difícil, eu não pertencia à família, era apenas amiga, mas lá me concederam cinco apressados minutos e por especialíssimo favor.
Lembro-me que chovia muito e as gaivotas faziam um barulho ensurdecedor.
Abril vinha perto mas eu não sabia.
Nunca mais lá voltei.
Por isso, decerto sou visitante diferente dos que neste domingo entram pelo forte dentro, e passeiam entre as muralhas, e delas se debruçam a olhar o mar.
Onde os guardas nos revistavam malas e sacos estão agora simpáticos funcionários que nos dizem onde é o museu.
Já não ouço o terrível som das portas a fecharem-se atrás de mim, porque agora as portas estão escancaradas até às sete da tarde, hora do encerramento do museu.
Porque agora o forte é um museu.
Museu que guarda—naquele bloco de cimento de janelas gradeadas—a memória dos que ali passaram meses, anos, vidas inteiras, presos entre quatro paredes de minúsculas celas.
Há quem por aqui se passeie normalmente, e se calhar assim é que deve ser, já se passaram mais de vinte anos que o pesadelo terminou.
Mas eu continuo a ver o vidro grosso a separar as pessoas nos cubículos do parlatório onde nos sentávamos, e o olhar dos guardas ali de pé, ouvindo tudo, e o terrível branco dos azulejos das paredes gelando-nos por dentro.
Olho este parlatório agora vazio, agora exposto às máquinas fotográficas dos turistas e continuo a ver, do lado de lá, o rosto sempre sorridente do Zé Magro, que escrevia poemas em letra muito miudinha para que o papel rendesse mais.
“Isto agora é um museu”—tenho de pensar muitas vezes, enquanto olho para os objectos expostos, as fotografias, os cadernos e livros que faziam, as histórias que escreviam para os filhos que não viam crescer.
“Isto agora é um museu”, repito.
Há mais de vinte anos que o forte é apenas o lugar do passeio domingueiro para se ver as vistas e tirar uma fotografia de grupo para o álbum de recordações, depois de uma boa caldeirada na Avenida do Mar.
Uma família passeia junto das muralhas. Olham a tabuleta que diz “Celas”, com uma seta apontada para uma rampa. A filha mais velha já vem a descê-la.
“Vale a pena lá ir?”, pergunta a mãe, “há lá coisas bonitas para ver?”
A rapariga franze o nariz.
“Nada…Só corredores e quartos vazios”
“E é para isso que se tem de pagar 120 paus?”, exclama a mais nova.
Riem e encaminham-se para a saída.
“Já dá para as bicas”, diz a mãe, contente com a poupança.
“Palavra de honra”, exclama então o chefe de família, “sempre gostava de saber por que é que chamam museu a isto…”
As gaivotas fazem um barulho ensurdecedor.
E eu continuo a pensar no vidro que havia entre as minhas mãos e as mãos do Zé Magro.
ALICE VIEIRA, “DN”, 1996
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira