O que faz um nome
Por Alice Vieira
Tinha pensado numa série de assuntos que podia abordar aqui agora. Do 25 de Abril já toda a gente falou. E só me lembrava de assuntos tristes—a pandemia, a Ucrânia, as crianças que sofrem, o vírus da hepatite que parece estar a atacar agora, eu sei lá. Por tudo isto é que eu estou com uma depressão que nunca mais passa. De vez em quando aparece uma amiga a quem eu digo isso e logo ela responde “eu também“. Não é que eu seja adepta do provérbio “o mal de muitos alívio é”, mas sempre me sinto acompanhada.
Mas mesmo nestes tempos complicados devemos fazer uma pausa e recordarmos histórias antigas, de um tempo em que nem sonhávamos que isto pudesse acontecer. Histórias que nos faziam rir e que recordamos até hoje.
Os outros assuntos, muito sérios, em que eu tinha pensado, ficarão para depois.
E a história de hoje tem a ver com nomes.
Por exemplo, eu farto-me de rir sempre que leio em rodapé na televisão, quando se fala de futebol, “Jesus contestado” ou “Jesus em dificuldades”, coisas assim. Eu sei que até é um nome normal, eu também me chamo Alice de Jesus, mas usá-lo sozinho é que dá sempre estes disparates.
Vamos lá então à história.
A minha tia Aurora, neste momento com extraordinários 96 anos, nunca percebeu nada de futebol. Sabe –penso eu!—que há uma data de homens a correr atrás de uma bola, duas balizas—e mais nada. Talvez saiba quem foi o Eusébio, mas tenho quase a certeza de que se alguém lhe falar em Cristiano Ronaldo é bem capaz de perguntar “é um teu amigo?”
Pronto, o retrato está feito. E a história passa-se num tempo–penso que todos ainda nos lembramos disso—em que o então presidente Cavaco Silva tinha eliminado vários feriados para tentar combater a crise económica. Lembro-me de terem sido eliminados o 5 de Outubro, o 1.º de Dezembro, o 1.º de Novembro, e o Dia do Corpo de Deus. Medida muito contestada, evidentemente, (eu fui das primeiras a barafustar) mas não havia nada a fazer. Era aguentar e cara alegre.
Então um dia a minha Tia Aurora estava a ler o jornal. Ela lia sempre o jornal de uma ponta à outra, incluindo as páginas de desporto
E nem reparou que estava numa dessas páginas de desporto.
E de repente telefona-me aos berros, como se algo de terrível lhe tivesse acontecido. Mal conseguia perceber o que me dizia.
–Acalme-se, tia! O que é que aconteceu?
–O que aconteceu? Ainda perguntas? Mas tu não lês jornais?
Não me lembrava de ter lido nada nos jornais que fosse assim tão terrível, esperei que ela continuasse.
–Então não é que o Cavaco também nos quer tirar a Páscoa?
Não acreditei e disse-lhe. Não morria de amores pelo homem mas duvidava muito que fizesse uma coisa dessas.
— Não acreditas? Então eu vou ler-te a notícia que vem aqui no jornal—e em letras bem grandes “
Uns breves segundos de silêncio, e depois ouço-a ler:
–“Quaresma em dúvida”. E agora já estás convencida?
Claro que nunca percebeu por que é que eu tinha desatado a rir que nem uma maluca…
É o que faz um nome.
Alice Vieira
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira