O meu Pai Natal
Alice Vieira
O Pai Natal é um velho de barbas brancas, que vem num trenó puxado por muitas renas, e deita os presentes pelas chaminés abaixo.
Mesmo nos prédios de muitos andares, que não têm chaminé.
É esta história que faz as delícias de miúdos e graúdos e em que, evidentemente, nem miúdos nem graúdos acreditam—mas fazem muito bem de conta. Porque é esse o papel que se lhes pede: que representem nesta altura
Devo dizer, no entanto, que, na minha infância, o Pai Natal nunca foi pessoa das minhas relações.
Para mim, o Natal era a altura do ano em que vinham os chatos dos tios muito velhos da província, que só queriam ver as revistas do Parque Mayer e engatar as coristas.
Depois davam-me prendas, que eu sempre pensei que eram a (justíssima) paga por ter passado aquele tempo caladinha no meu canto, sem chatear os adult(er)os.
Com a chegada dos meus filhos fui, digamos, obrigada a fazer a revisão da matéria dada…
Mas eles, coitados, também chegaram em má altura, andava toda a gente muito revolucionariamente excitada, e o Pai Natal não entrava naquela excitação.
Era o tempo dos “operários do Natal”, estão a ver,
“quem faz o Natal são os operários”,
e lá vinha o pasteleiro, e mais o carteiro e mais o lenhador
“quem abate o pinheiro de Natal
é alguém que trabalha e ganha mal”
e cada um deles era
“um irmão nosso que trabalha no Natal”,
e a malta muito deprimida, a pensar na trabalheira que estava a dar a tantos irmãos nossos, coitadinhos, a esfalfarem-se pelo nosso bem e ainda por cima mal pagos.
O Pai Natal, ou não entrava na história, ou era o capataz da fábrica e, com esse, pouca conversa, camaradas!
Quando comecei a achar uma certa graça ao senhor –e, confesso, a não me ralar com a trabalheira que estava a dar a todos os irmãos nossos – já tinha netos.
Estes sim, puderam gozar à vontade o Pai Natal, apertar-lhe a mão sem remorsos, fazer-lhe estranhas encomendas, tirar retratos ao colo dele, pô-lo inclusivamente deitado nas palhinhas num dos muitos presépios cá de casa.
Entretanto cresceram, desandaram para longes terras e o meu Pai Natal ficou outra vez um pouco abandonado.
Agora—quando, por acaso, o meu Pai Natal é mesmo um amigo meu.
Lembro-me que há meia dúzia de anos subi imenso na consideração da minha neta mais nova quando. íamos nós a entrar num café, eu lhe disse:
–Conheço o Pai Natal. É aquele senhor que está ali.
Porque o meu Pai Natal existe.
Chama-se Severino, andou por Angola, fez rádio, teatro amador, publicidade, etc, etc. Reformou-se há anos, e desde então vai escrevendo uma coisas, faz uns vídeos e, quando chega Dezembro, veste a fatiota vermelha, põe as barbas brancas e anda por um dos centros comerciais mais importantes de Lisboa a deixar-se fotografar com as crianças ao colo e a ouvir histórias.
E tem histórias fabulosas.
Desde polícias a quererem fotografar-se ao seu lado, até uma criança muito indignada por ele não trazer no bolso as fotografias das renas
“parece impossível! Elas a estafarem-se a puxar por ti e tu não lhes ligas nenhuma?!”
passando por uma espanhola-em-toda-a-acepção-da-palavra a pedir-lhe
“um homem, por favor, um homem! que eu estou verdadeiramente encalhada, caramba! e acho que isto só lá vai com a ajuda do Pai Natal”
E o meu Pai Natal é tão bom, mas tão bom mesmo que, passado
um ano, a espanhola estava casada, e olé!
Quer dizer, comecei tarde a acreditar no Pai Natal—mas valeu a pena.