Crónica de Alice Vieira | O Fantasma do Treinador

O FANTASMA DO TREINADOR
Alice Vieira

 

Não sou particularmente fanática dos Suiços. Tudo bonito demais, limpo demais, ordenado demais, tranquilo demais, perfeito demais.(Com excepção da minha editora, de Genève, que me trata muito bem, e Deus queira que assim se mantenha por muitos anos e bons.)

Tive pena que tivessem ficado pelo caminho no Mundial de Futebol, porque (sobretudo desde que Portugal também perdeu) tenho sempre pena dos vencidos.  Mas—confesso—não deixei de sorrir.

E de repente vejo-me, para aí há uns dez ou doze anos, acabada de chegar à cidade de Berna, completamente estoirada porque nessa manhã tinha acordado em Lucerna, onde alguém me tinha ido buscar a correr para me levar a uma escola em Sursee, e de lá ainda outra em Zurique—e de lá finalmente para Berna.

Aterrei num hotel, onde havia um quarto reservado em meu nome, tudo o que eu mais queria era dormir, mas o empregado, muito simpático e a desfazer-se em sorrisos, só queria fazer publicidade à sua terra, e se eu já tinha ido à fossa dos ursos, imperdoável estar em Berna e não ir à fossa dos ursos, e eu que sim , claro, no dia seguinte era o que faria, sabendo perfeitamente que no dia seguinte sairia muito cedo para apanhar o comboio para Genève–mas naquele momento queria era a chave, o quarto, dormir a noite inteira, mas ele não desistia, Berna é uma cidade  muito acolhedora, muito calma, e os ursos, não esquecer os ursos!, e eu a prometer tudo desde que ele me desse a chave—e lá vou finalmente até ao terceiro andar.

Ao chegar vejo uma grande placa dourada afixada na porta com um nome gravado e eu a pensar ”não me digam que o porteiro se enganou e me deu o quarto do dono do hotel, ou de um administrador”, mas mesmo assim meti a chave à porta , sempre com a sensação de estar a invadir a privacidade de alguém, e abri a luz.

E de repente vejo-me num quarto forrado de fotografias do chão ao tecto, fotografias de um homem que não conheço de lado nenhum, e que me sorri, de frente e de perfil, de casaco e gravata , mas também de calções, muitas vezes de calções, a apertar a mão a meio mundo, com e sem apito na boca,   com e sem taças na mão, para onde quer que me volte lá está ele, por cima da cama, na parede em frente da cama, nas paredes ao lado da cama, nas paredes da casa de banho, não há centímetro de parede que não tenha a sua cara.

Volto ao corredor e leio então a placa: “Roy Hogdson—treinador nacional de futebol, 1992-1996.

E lá me resignei a dormir com uma glória do desporto que ali tinha vivido nesses quatro anos em que, pelos vistos, levara o futebol suíço aos píncaros da fama.

Fama que, apesar de tudo, não me parece ter sido assim muito espectacular: uma ida a um campeonato do mundo e a um da  Europa, sem grandes resultados finais.

E é por tudo isto que eu me rio: será que o Vladimir Petkovic, actual treinador da equipa da Suiça, também tem direito a quarto com fotos e placa na porta no Hotel Berna? E os outros todos que o antecederam? ( O Artur Jorge só aguentou sete meses, por isso não conta)

Nunca mais voltei ao Hotel Berna, mas gostava de saber.

Por isso aqui deixo o apelo : se alguém for a Berna , fique neste hotel e depois diga-me se há muitos fantasmas de treinadores pelos quartos.

(Ah,e já agora, vá à fossa dos ursos. Eu não fui e ando para aqui roidinha de remorsos.)

 

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