O cheiro a fumo
Alice Vieira
Hoje—e até daqui a muito tempo—todas as ruas cheiram a fumo.
Hoje—e até daqui a muito tempo—todas as palavras cheiram a fumo.
Hoje—e até daqui a muito tempo – tudo cheira a fumo.
De repente, o mesmo cheiro que entrava pela minha casa, no princípio daquele mês de Setembro de 1966.
Eu tinha pouco mais de 20 anos, e nessa altura vivia em Rio de Mouro, uma pequena aldeia perto de Sintra. E sempre que chegava o verão, chegavam os incêndios. Quer dizer : ardia algum mato, uns arbustos à beira da estrada e pouco mais. Mas quase todos os dias, geralmente ao fim da tarde.
Ouvíamos a sirene, e lá íamos nós, estrada acima, até chegarmos ao sítio e voltarmos para trás, porque já estava tudo apagado. Ríamos, conversávamos com os vizinhos, aquilo era assim o nosso desporto de verão.
Só que um dia a sirene não parava de tocar. E logo uma enorme nuvem de fumo caía sobre as nossas cabeças. E logo percebemos que, daquela vez, não era mato rasteiro que estava a arder.
Rapidamente começaram a chegar informações desencontradas—mas uma coisa era certa : a Serra de Sintra estava em chamas.
Seteais, Monserrate, a Lagoa Azul, a Pena Longa, os Capuchos estavam em perigo. E de cada vez que chegavam notícias era para dizer que havia focos de incêndios, vindos sabe-se lá donde, e que atacavam as aldeias próximas, Cacém, Colares, S.Pedro de Sintra, até mesmo a praia das Maçãs.
Lembro-me ainda hoje do clarão que se avistava de toda a parte.
E do cheiro a fumo.
E de termos corrido todos, sabíamos lá para onde, mas só queríamos ajudar, porque pela rádio se sabia que todas as ajudas eram poucas, porque todos os meios de combate ao fogo eram poucos. Muito poucos.
Estava mobilizado o Regimento de Artilharia Anti-Aérea Fixa (RAAF) de Queluz.
Sem preparação. Sem condições, com uniformes pesadíssimos , botas de borracha, capacetes de alumínio.
Depois acorreram todos os corpos de bombeiros de Lisboa, das Caldas, de Elvas, de Leiria.
Mas tudo era pouco. E tão rudimentar…Os carros de bombeiros não tinham então capacidade para grandes depósitos de água, nem bombas. As comunicações eram difíceis (estava-se no início dos anos 60…)
Lembro-me de todos pegarem em ramos de árvore e com eles baterem na terra a arder.
Ninguém dormiu naqueles muitos dias em que o fogo não abrandava. O “Diário de Notícias” falava de “Sintra, uma vila ocupada.”
E de repente, a juntar a tudo, descobrem-se os corpos de 25 militares do RAAF, todos juntos, na serra, carbonizados.
Cercados pelas chamas, não sabiam como fugir delas. Morreram juntos.
Foi o incêndio mais mortífero do país.
Até agora. Em que, apesar de todas as tecnologias e comunicações, chegámos ao que chegámos.
Mas temos de reagir e de andar para a frente.
Na terça-feira, acabada de chegada de Penafiel, onde o cheiro a fumo estava em toda a parte e entrava por todas as janelas, fui ao lançamento de um livro da minha querida amiga Anabela Teixeira (Sim, essa, das telenovelas e do teatro)
Nem de propósito: o livro chamava-se “Voltar à Terra”. (A Anabela, para lá de ser actriz, é uma ecologista muito empenhada , activista e conhecedora dos problemas.)
A apresentar o seu livro agradeceu, como é habitual nestas coisas, a toda a família, ali presente, lastimando apenas a ausência da avó:
“Ontem a minha avó perdeu a casa, a terra, e as 25 ovelhas”
E eu fiquei a olhar para ela—ela que passara todas as férias da sua infância nesse lugar, e aí aprendera a conhecer as árvores, a terra, os animais—sem conseguir dizer nada.
Mas alguém murmurou “ e agora?”
Os olhos da Anabela iluminaram-se:
“Agora vamos começar a plantar tudo de novo. Já amanhã.”
E não há outra resposta senão essa.
Parabéns Alice pela crónica! Infelizmente este foi um ano terrível no que toca aos fogos. 🙁 Um beijinho
Eleutério