Crónica de Alice Vieira
O CAVALO DE GUERRA
Alice Vieira
Há muitos anos, por esta altura, eu estava em Ypres.
Ypres é uma cidade flamenga, martirizada durante as duas guerras mundiais.
Na primeira, foi palco de cinco grandes batalhas, entre britânicos e alemães (em que estes, como vingança, lançaram um gás de cloro que, em 10 minutos, matou cinco mil pessoas)
Na segunda, foi totalmente destruída.
Ypres é um soco no estômago de quem lá vai
Porque toda a paisagem de Ypres é feita de cemitérios. Só se avistam cemitérios, com as campas todas brancas e todas iguais, só se visitam cemitérios, só se lêem placas das campas dos cemitérios. Quilómetros e quilómetros de cemitérios como, noutros países visitaríamos, decerto, castelos, jardins, quedas de água.
Cemitérios e campos de batalha.
Lembro-me de que estava lá num encontro promovido pela União Europeia, com mais alguns escritores da Bélgica e do Reino Unido, todos convidados porque todos tínhamos participado numa antologia sobre a guerra, intitulada “Lá Longe a Paz”. Em termos de língua portuguesa eu estava bem acompanhada com textos de Sophia, Ruy Belo, Mia Couto, Manuel Alegre e outros que agora não recordo, mas, vá-se lá saber porquê, só eu é que tinha sido convidada a estar presente.
Reuníamo-nos no belíssimo Town Hall (todo ele reconstruído, mas mantendo-se tal como era antes dos bombardeamentos) e criei logo amizade com um dos grandes escritores ingleses, chamado Michael Morpurgo.
Vimos tudo o que havia para ver, tirámos fotografias a todos os cemitérios e campos de batalha, e casas destruídas
E cada um de nós falou também—para amenizar um pouco—da sua terra e dos seus projectos. (Mais tarde Michael Morpurgo viria a ser uma ajuda preciosa na biografia que eu escrevi sobre a Enid Blyton…)
Um dia o grupo foi visitar o Museu da Guerra. (Sim, porque para lá de todos os cemitérios e campos de batalha, e casas destruídas ainda há mais um museu a falar da guerra…)
Salas e salas com fotografias, reconstituição de trincheiras, armas, retratos de mortos etc… Até que chegámos a uma sala pequena, totalmente ocupada por um cavalo, em tamanho natural, caído no chão.
Michael Morpurgo não saía dali. Olhava o cavalo, tomava notas, tirava fotografias. Por mais que o chamassem, nem ouvia. Saímos todos e ele ficou.
Chegou atrasado ao jantar, evidentemente.
E disse-me:
” Ainda hei-de escrever uma história sobre aquele cavalo, vais ver!”
Cumpriu a promessa — e o livro era publicado pouco tempo depois.
E Steven Spielberg pegou nessa história e fez dela “O Cavalo de Guerra”.
Já vi o filme não sei quantas vezes. E se agora me lembrei disto é porque há dias o vi novamente, num canal de cinema da televisão.
E a imagem que me vem sempre à cabeça é Michael Morpurgo, sem dizer uma palavra, alheio a tudo o mais, diante do cavalo caído, no museu.
Tenho a certeza de que já tinha o livro todo na cabeça quando saiu de lá.
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