Crónica de Alice Vieira
O Anjo
Alice Vieira
Vivi grande parte da minha vida junto ao mar. Agora na Ericeira, e em jovem na Costa Nova. Ambas praias de pescadores—mas muito diferentes. Naquele tempo os homens da Costa Nova saíam cedo de casa e demoravam muito a regressar. Iam todos para a pesca do bacalhau, lá nos confins do Mar do Norte, e as mulheres ficavam com todo o peso da vida às costas—a casa, os filhos, os parentes velhos, e ainda a pequena horta de que era preciso tratar.
Eram mulheres fortes. Havia mesmo quem dissesse que eram mulheres duras, sem voz nem vagar para um carinho, um mimo, um afago.
As crianças lá de casa sabiam que era nelas que estava o mando e a decisão. Os homens eram aqueles seres estranhos que de vez em quando apareciam, traziam dinheiro e deixavam os filhos pendurarem-se-lhes nos ombros, “porque é preciso gozá-los agora, daqui a nada a gente está de volta ao mar e sabe-se lá quando voltamos”
Lembro-me que os homens eram sorridentes e cheios de paciência. Contavam histórias, fumavam cachimbo, mascavam tabaco. As mulheres não tinham tempo para histórias que não fossem as do seu dia a dia, meses e meses a fio largadas à sua sorte. Muitas nem sequer tinham tido tempo de ir à escola, porque desde crianças que eram necessárias para ajudar em casa.
Também a tia Hermínia nunca fôra à escola. Criara filhos e netos que também andavam pelo mar.
Um dia, passava ela já dos 70, no meio do silêncio em que sempre se faziam as refeições, declarou:
–Apareceu-me um anjo esta noite.
Todos nós olhámos para a tia Hermínia que, imperturbável, continuou:
–O anjo mandou-me aprender a ler.
O silêncio entre nós continuou.
Daqueles de nós que ainda estão hoje vivos—e são alguns, felizmente– nenhum é capaz de explicar muito bem o que aconteceu a seguir. A Tia Hermínia sabia apenas que nunca se deve desobedecer aos anjos, sobretudo aos que têm o trabalho de nos aparecer a meio da noite.
Nunca mais voltou a falar no assunto, porque as mulheres lá de casa nunca repetiam uma ordem ou um desejo : o que se dizia uma vez, dito ficava para sempre.
Ela própria se encarregou de procurar professora, o que não foi difícil : chamou lá a casa a Menina Marquinhas que, na aldeia, já tinha ensinado os filhos e os netos de toda a gente.
A princípio também a Menina Marquinhas se admirou, mas a tia Hermínia não admitia sequer a mais leve expressão de dúvida na cara dos outros : um anjo dera-lhe uma ordem e naquela terra ninguém desobedecia às mulheres, muito menos quando estas eram visitadas por anjos de madrugada.
Se o anjo voltou a ter interferência na aprendizagem da Tia Hermínia não se sabe, nem ela o disse.
Sabe-se apenas que a Tia Hermínia aprendeu a ler e a escrever no espaço de um mês.
–E sem dar um erro!!!—exclamava sempre a Menina Marquinhas, orgulhosa da aluna.
–Foi o anjo—era a única explicação da Tia Hermínia.
Dizem que , desde essa altura, um anjo passou a velar pelos destinos das mulheres da nossa família . Entre a comunidade celestial devemos gozar da fama de sermos exemplarmente obedientes às ordens que nos dão.
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