Crónica de Alice Vieira | Nunca voltes ao lugar onde já foste feliz

Alice Vieira

 

Nunca voltes ao lugar onde já foste feliz
Por Alice Vieira

 

Naõ sei se serão resquícios do confinamento mas, de vez em quando, sinto muita vontade de ir a lugares de que gosto muito mas onde não vou há imenso tempo.

De qualquer maneira a essas recordações junta-se sempre a cantiga do Rui Veloso — “nunca voltes ao lugar onde já foste feliz “—e pronto, não saio do mesmo lugar.

Adorava voltar a Paris (onde vivi tantos anos), a Timor (onde estive antes, durante e depois da independência), e  a Berlim (onde estive antes, durante e depois da Queda do Muro)

Mas vejo documentos destes tempos de agora… e perco logo a vontade. Já não tenho nada a ver com aquilo embora, evidentemente, tudo esteja bem melhor. Eu é que já não pertenço àqueles lugares. E, com guerras por toda a parte, cada vez me apetece menos

Por isso deixo essas lonjuras  e penso  que também me apetece muito ir a Caldelas, perto de Braga. Sempre é mais perto.

Quando era criança e jovem, eu passava todos os verões, com os meus tios nas termas de Caldelas. Para mim, era o paraíso. A minha tia, que nunca me deixava estar 5 minutos sozinha,  chegava a Caldelas e largava-me e só me queria ver depois do jantar — e por pouco tempo  . Quem ficava comigo era a Rosalina, que me levava com ela a arrumar os quartos, que  me dava o almoço e o jantar,  que me perguntava sempre “a menina está boínha” — palavra que eu nunca tinha ouvido—punha-me na cama à noite e, de vez em quando, ia ver se eu já estava a dormir ou se necessitava de alguma coisa. E depois havia o Sr. Gualberto, que tocava saxofone durante as refeições dos adultos, que tinha uma paciência enorme para mim, e me contava histórias extraordinárias, como a de um rei de Portugal que  vivia com uma rainha lindíssima de quem gostava muito, mas depois conhecera uma princesa também muito bonita  e passava o tempo a andar pelos campos a murmurar “qual delas, meu Deus, qual delas!” — e daí tinha vindo o nome da terra: Caldelas… No dia dos meus anos, o Sr. Gualberto mandava-me sempre a fotografia dele a tocar, e assinava “Gualberto, o do saxofone”. E era sempre assim que se apresentava quando chegavam hóspedes novos.

Se calhar um dia destes perco a cabeça e ainda lá vou para ver se está na mesma ou não.

Depois conto.

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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